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Em Breve, “Universidade Micro-ondas”*: o caso das Instituições de Educação Superior Privadas no Rio de Janeiro

Este artigo, tem como objetivo discutir a situação do trabalho docente nas Instituições de Educação Superior (IES) privadas, no contexto de reestruturação operada neste setor, nos últimos anos.
Em Breve, “Universidade Micro-ondas”*: o caso das Instituições de Educação Superior Privadas no Rio de Janeiro

"Ataquemos o analfabetismo" - V. Kulaguina/1931

por Aparecida Tiradentes - Assessora em Assuntos Educacionais do Sinpro-Rio. Pesquisadora em Educação profissional da Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

 

Introdução: Contexto e conjuntura das reformas educacionais a partir da década de 1990

 

O quadro de mercantilização da Educação Superior brasileira privada, o processo de abertura de capital ao mercado de ações (precedido de renúncia à condição de entidades filantrópicas para caracterizarem-se abertamente como empresas que produzem e vendem uma mercadoria - o ensino) não é um fenômeno singular, mas expressão de uma tendência que vem se afirmando há cerca de duas décadas no plano internacional.

 

Podemos tomar o ano de 1990 como marco inicial das transformações sofridas pela educação no contexto neoliberal, adotando como elemento-síntese a Conferência Mundial “Educação para todos”, realizada naquele ano na cidade de Jontiem, Tailândia. Aquele evento consagra, no campo educacional, o que o Consenso de Washington consagra no plano econômico-político. Tanto um quanto outro são, como dito acima, elementos-síntese de um processo histórico multideterminado, e, em última instância, traçam as diretrizes para a “Era do Mercado”. Condensam uma ideologia que, na compreensão gramsciana1, é a concepção de mundo orgânica a uma classe social posta em operação na construção da hegemonia. Amparam-se na idéia-força2 de que o mercado é o legítimo fundamento da economia e da sociabilidade e de que a educação consiste em uma atividade de natureza econômica tal qual todas as outras, que deve ser oferecida pelo mercado sob a forma mercadoria-serviço e sob as regras da produção e da circulação de mercadorias. O quadro que se delineia a partir de então, na Educação Superior privada, compõe-se essencialmente dos seguintes elementos: concepção mercantil da educação, abertura de capital, internacionalização, concentração do capital em mãos de grandes grupos nacionais e internacionais capitaneados pelo Grupo Objetivo, Grupo Kroton, Anhanguera Educacional, Estácio Participações etc., mudanças curriculares de teor neotecnicista, neoprodutivista e neofuncionalista3. Este quadro, além de produzir danos aos trabalhadores envolvidos no setor, como agravos à saúde física, psíquica e emocional, instabilidade, ruptura dos laços sócio-afetivos, perda das condições de subsistência e/ou de tempo livre, perda do sentido do trabalho, compromete a qualidade da formação humana e do papel da Educação Superior na produção e difusão da ciência em suas mais elevadas manifestações.

 

Se tomamos o trabalho em sua dimensão ontológica4, compreendemos a destruição do sentido do trabalho docente, em última instância, como a destruição mesma do sentido da existência do trabalhador da educação. Mutilar o trabalho pedagógico, retirando-lhe a dimensão criadora, epistemológica, política, transformadora e sócio-afetiva em nome das aulas padronizadas do mercado, da economia de escala realizada em aulas por atacado, representa o genocídio existencial de professores e alunos, o genocídio político das gerações que estão e estarão em formação, impedidas da construção do pensamento crítico, de novas idéias-força que levem ao limite as idéias-força burguesas, impedidas da construção de práticas sociais contra-hegemônicas, a partir do que Gramsci chama de elevação cultural das massas.5

Eixo 1 - A luta no plano da infraestrutura: Os determinantes da universidade micro-ondas

 

Ano de 1999: Após alguns anos de mercantilização, privatização e customização6 da educação na fase pós-Consenso de Washington e Conferência de Jontiem, seguidos do Relatório Jacques Delors com os quatro pilares para a educação para o novo milênio7, os Estados Unidos apresentam à Organização Mundial do Comércio a proposta para que a educação seja listada entre as atividades reguladas por aquela organização, subordinada especificamente ao GATS (ou AGCS, Acordo Geral para Comércio em Serviços) e que os países membros ofereçam seu mercado educacional à internacionalização. É a consignação da idéia de que educação é mercadoria. Mais do que o princípio da existência das instituições privadas de ensino, mais do que submeter ao mercado as regras de comercialização de uma mercadoria, é a própria “produção” desta mercadoria, seu significado, dimensões, processos e relações, que são subordinadas à lei da mais-valia e seu conflito estrutural. Dentre as características da internacionalização ao modo da OMC/GATS, temos: a internacionalização da “carteira de clientes” (discentes) e do corpo docente, a padronização curricular e didática em esfera mundial, o fim das “barreiras” formais para o exercício da docência, o rebaixamento dos salários pelo menor nível do mercado internacional. Considerando-se que, observados os componentes históricos, o magistério brasileiro vem conquistando condições de trabalho como planos de carreira e exigência de titulação para o exercício profissional (embora ainda tenhamos na prática professores leigos) um pouco melhores do que colegas de alguns países latinoamericanos e africanos de língua oficial portuguesa, a desterritorialização neste setor, tal como em outros setores, como metalúrgicos, operadores de call centers etc., acarretará a tendência de queda do emprego aqui, em favor da compra de mão-de-obra de menor custo ali.

 

Ainda que o Brasil não tenha oferecido, até o momento, seu mercado educacional ao GATS, os empresários do setor têm perseguido acordos e lacunas na legislação que permitam a quebra dos limites legais e pedagógicos representados pelos Estados nacionais. Amparam-se no chamado do “Processo de Bolonha” 8, modelo de internacionalização formalizado em reuniões ministeriais da União Européia em atenção às demandas do “mercado educador”, sem participação da comunidade acadêmica. Caracteriza-se pelo aligeiramento dos cursos, instrumentalização curricular, padronização, desregulamentação da profissão docente e mobilidade docente e discente. Sintetiza-se na busca do docente de menor custo onde quer que ele esteja9 e do discente, igualmente, onde quer que se encontre e, ainda, na formação de consórcios para fins de corte de custos salariais e de equipamentos. Nos consórcios, IES atuam conjuntamente ou em rede, revezando e compartilhando encargos. Cada uma oferece parcialmente, por exemplo, a grade curricular de um curso ou os recursos infraestruturais, como laboratórios e bibliotecas. Cabe ao aluno integralizar seu curso percorrendo IES diferentes, que, em alguns casos, estão sediadas em países diferentes, obtendo diplomação de validade transnacional. Privilegia-se, para tal fim, a EAD, Educação à Distância. Este é basicamente o escopo do Processo de Bolonha, que em muito pouco difere da tendência mundializante, nas últimas décadas, nos demais setores da economia. A desterritorialização de regiões onde a força de trabalho apresenta acúmulo histórico de lutas, conquistas e níveis de organização inconvenientes ao capital tem sido a tendência nos setores dos agronegócios, da indústria e em muitas atividades de serviços, como o bancário, teleatendimento e outros. Realiza-se, subseqüentemente, a reterritorialização ou relocalização da atividade em regiões onde a força de trabalho apresenta maior vulnerabilidade. 10 No caso do Brasil, esta desterritorialização e reterritorialização pode ser observada nos últimos anos com o deslocamento de atividades das montadoras de automóveis, indústria de bebidas alcoólicas e o serviço privatizado das telecomunicações. A Região Nordeste, especialmente o Nordeste rural, onde grande parte da classe trabalhadora ainda se vê refém do trabalho no campo sob os desmandos do coronelismo e das intempéries da natureza, vive um processo de territorialização11 , com a chegada de empresas do ramo industrial e de serviços. Não nos esqueçamos do ganho adicional na forma de incentivos fiscais para tal deslocalização, que permite, por vezes, ao capital, “oferecer” às comunidades (com financiamento público) os serviços de interesse social, como pavimentação, segurança, saúde, educação, iluminação elétrica, acesso à internet. Tais “benefícios” instituem uma relação paternalista com a população, substituindo o coronelato pelo capital industrial ou de serviços em bases técnicas mais sofisticadas. Então, no processo de deslocalização, além de partir em busca de uma força de trabalho mais vulnerável e de menor custo, os oligopólios recebem adicionalmente incentivos públicos para seduzir, com a força civilizatória do capital, seus novos explorados.

 

É exatamente neste terreno, gerido por “investidores” comprometidos tanto com a formação humana quanto com a indústria de bebidas alcoólicas, de cigarros, de fármacos, de parques temáticos, 12 que se move um dos maiores setores da economia brasileira – a educação - que, somente em renúncia fiscal, representa o montante de R$370 milhões ao ano13. Segundo o censo do INEP de 2007, das 2.281 IES brasileiras, 89% são privadas; cerca de 75% do total de alunos da Educação Superior estão matriculados nestas IES, em sua imensa maioria alunos trabalhadores e filhos de trabalhadores, que se dividem entre atividades acadêmicas e laborais. O segmento da pós-graduação apresentou crescimento na ordem de 379% nos últimos anos, no setor privado14. A proporção entre IES públicas e privadas inverteu-se nos últimos trinta anos. Contabilizam-se 391 mil trabalhadores formais no setor privado brasileiro hoje, segundo Capelato15. São 391 mil famílias vulneráveis à instabilidade, à ameaça cotidiana de desemprego e/ou redução de carga horária, com conseqüente redução salarial, à perda de direitos. No caso do Rio de Janeiro, uma das poucas cidades que contam com uma convenção coletiva que define plano de carreira e direitos, como bolsas de estudos para filhos de professores, a instabilidade no emprego docente e na carga horária representa, adicionalmente, a instabilidade de continuidade de estudos para seus filhos. O docente dedica-se a ensinar aos filhos dos demais trabalhadores, mas vê ameaçado o direito de seu próprio filho permanecer estudando. Marx, ao formular o conceito de alienação, nos auxilia na compreensão deste fenômeno. Se contabilizarmos os trabalhadores não formais envolvidos no setor, por exemplo, prestadores eventuais de serviços na EAD e na educação presencial, professores dos cursos de pós-graduação lato-sensu, que atuam, em sua maioria, sem contrato formal, sem qualquer registro ou garantia trabalhista, teremos um número maior, a considerar o crescimento de 379% deste segmento mencionado acima. Se ampliarmos nossa análise para o âmbito de ação das universidades corporativas16, o número de trabalhadores não registrados atuando no setor eleva-se significativamente.

 

Em pesquisa sobre a intensificação do trabalho no Brasil, Dal Rosso,17 baseado em exaustivos dados empíricos, aponta a categoria de docentes do ensino privado como a que mais sofre os efeitos da intensificação e da precarização do trabalho no Brasil em diversas das variáveis consideradas. Observe-se que o autor averiguou um espectro amplo de categorias profissionais de todos os setores da economia. Assim como nos setores bancário, industrial, de comunicações e outros tantos, o setor educacional vem intensificando um processo de concentração e abertura de capital ao mercado financeiro. A concentração do capital (fusões, aquisições), nomeado por seus protagonistas como “consolidação”, ocorre a partir de grandes grupos sediados no Rio de Janeiro e em São Paulo, que avançam sobre IES de pequeno porte, grande parte do interior do país, como apontam os estudos de Magna Corrêa Duarte e Paulo Cesar Ribeiro, diretores do Sinpro-Rio:

(...) observa-se o processo de formação de conglomerados educacionais do porte da Estácio Participações S.A., Grupo Anhanguera - Morumbi e a Rede Kroton Educacional, com ramificações por vários estados. Esses grupos protagonizaram transformações significativas no quadro de fusões e aquisições no País. Dados estatísticos apontados por várias consultorias econômicas revelam que a Educação já é o terceiro setor em que mais ocorreram transações desse tipo no ano de 2008. Esse setor só perde para as áreas de Tecnologia de Informação e Alimentos-Bebidas-Cigarros. Realizaram-se 30 aquisições no primeiro semestre de 2008, em contraste com as 19 realizadas no ano de 2007. Esses números são reveladores do movimento de efetiva consolidação do Ensino Superior Privado que teve crescimento de mais de 100% desde o fim dos anos 90. As IES pequenas e lucrativas serão compradas pelas maiores; as deficitárias, fechadas; e os grandes conglomerados formarão um forte oligopólio”. 18

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Manifestação durante a ocupação da Reitoria da UERJ

Para tal façanha, estes grupos contratam consultorias experientes em “modernização” da gestão nos moldes toyotistas, que se dedicam a modernizar escolas como se modernizam as cadeias de lojas de varejo, bancos, montadoras de automóveis, indústrias de bebidas alcoólicas. Os critérios de qualidade são os do mercado, oriundos do núcleo central do capitalismo mundializado. Uma das aspirações recorrentes é a obtenção de certificados ISO e similares. Não nos esqueçamos, por exemplo, de que a ISO, sediada em Genebra, notabilizou-se pela série 9000, a da Qualidade Total, que se refere à padronização e ao corte de custos - produzir mais, com menores despesas e com padrão uniforme. 19 Nunca se falou tanto em economia de escala no setor educacional, nem mesmo nos tempos áureos do fordismo. É interessante observar que, a despeito de uma das características atribuídas ao modelo toyotista - em suposto contraste com o fordista - ser a substituição da economia de escala, da produção em série, pela produção just-in-time, por demanda e flexível, não se pode afirmar, por um lado, que o modelo se opõe ao paradigma fordista, nem, por outro lado, que com ele se confunde. Em estudo anterior20, já apontávamos a dialética entre os dois modelos, que, para além da pseudoconcreticidade do antagonismo, são, em muitos aspectos, faces complementares que se combinam no movimento de restauração capitalista das últimas décadas. Quando o modelo modernizado julga conveniente lançar mão da economia de escala, não o abandona por julgá-lo ultrapassado, aprisionado historicamente no fordismo. Neste caso, o da educação, a economia de escala aplica-se, mesmo em contexto toyotista, pela virtualidade da universalização desta “mercadoria”. Universalização esta ainda longe de ser alcançada, mas, em sua virtualidade, presente no próprio discurso da empregabilidade, enunciado pelo capital, que, alheio à educação universal de qualidade como direito fundamental do cidadão, clama pela quantidade, criando um consumidor para um produto 21. Há, portanto, consumidores em potencial para a produção em escala desta “mercadoria”, principalmente se as IES privadas produzirem-no. Como exemplo desta produção de um consumidor para um produto, verificamos a demanda recente do Fórum da Livre Iniciativa na Educação: alteração da LDBEN 9394/9622 no sentido de permitir o ingresso na Educação Superior de candidatos que não tenham cursado o Ensino Médio.

 

Teriam acesso a cursos de outra natureza, (...) sem Matemática, Física, estas coisas (...) mas voltados para a prática do trabalho (...) A costureira, o balconista da padaria, que não cursaram o Ensino Médio, querem ter um curso superior, e pode ser um curso diferenciado(...) Se, após cursarem um período do curso superior, forem aprovados, recebem retroativamente o diploma do Ensino Médio”.23

AS IES privadas contam com uma base de apoio, a Frente Parlamentar em Defesa das IES Privadas, composta por 214 congressistas dispostos a aprovar demandas desta natureza. A solução apresentada pelas IES para a universalização é a adoção de aulas padronizadas e da EAD como instrumentos da produção em escala. O termo economia de escala é usado despudoradamente pelo discurso das empresas de consultoria educacional comprometidas com este modelo de gestão.

 

No que tange às fusões e aquisições, há hoje no Brasil, segundo a Hoper Educacional24, 12 grupos consolidadores com R$ 1,5 bilhão para comprar. O segundo maior grupo consolidador, a Estácio Participações S.A., navega confortavelmente em uma margem líquida de lucros da ordem de 7,5% de um patrimônio gigantesco. 25 Há, por outro lado, um conjunto de 1.700 IES sem condições de sobreviver à onda consolidadora, conforme Braga, que devem se modernizar para serem adquiridas por ou fundirem-se às maiores. “O setor tem um brutal poder de economia de escala. (...) A consolidação é irreversível.” 26

As sugestões pedagógicas para a viabilização da consolidação e da economia de escala, segundo Braga, são:

Avaliação docente eficaz (...) material e conteúdo de apoio padronizados (...) aula estruturada previamente com itens específicos do roteiro de preparação da aula (...) apresentação prévia do plano de aula; planejamento aula-a-aula (...) centro de estruturação metodológica – learning center- que define toda a estrutura das aulas(...) prova colegiada: a prova não deve ser elaborada pelo professor, nem corrigida por ele. Professores passam a metade do semestre falando de novela e futebol e no fim são avaliados pela opinião do aluno. Dão uma avaliação fácil para todo mundo ter boas notas. É preciso medir se o professor realmente cumpriu o planejamento, se de fato ensinou e se efetivamente o aluno aprendeu. (...) No início, os professores serão contra, mas é só dizer: Tem que fazer! Se não fizer, não trabalha mais aqui!”27

São estas algumas das recomendações pedagógicas de uma das maiores empresas de consultoria educacional dedicadas no momento a preparar as IES para adquirem ou serem adquiridas, para tornarem-se boas compradoras ou boas mercadorias vendáveis. E para pleitearem junto ao Ministério da Educação e ao Poder Legislativo, dispositivos formais para tais monstruosidades.

 

Outro elemento relevante no movimento do mercado na educação consiste na abertura de capital ou IPO28. Condição para o IPO, a renúncia da condição de entidade filantrópica desvela a face realmente mercantil do setor, que passa a assumir ostensivamente, em todos os aspectos, a condição de uma organização “de negócios”. A perda de benefícios fiscais decorrentes da renúncia à condição de filantropia é compensada pela busca de novos modelos de financiamento. Precedido de uma fase de cerca de três anos de ajustes e adaptação da “empresa” ao mercado, o IPO representa a transferência de poder decisório para investidores, que passam a controlar os resultados da atividade financiada. São contratadas consultorias, em geral de porte internacional, especializadas em realizar reengenharia em empresas dos mais diversos setores da economia e prepará-las para o mercado financeiro: corte de custos, customização, intensificação da extração de mais-valia intensiva e extensiva, adoção dos padrões gerenciais do mercado.

 

Um elemento significativo é que a geração de valor desloca-se parcialmente da atividade-fim ou da mercadoria específica produzida/fornecida por aquela organização e passa a se concentrar nos papéis, no capital financeiro. A atividade-fim passa a ser considerada, em larga medida, um estorvo. Um inconveniente similar, em bases legais, às atividades ilegais de lavagem de dinheiro, a face visível do empreendimento, que oculta as reais fontes do lucro. A valorização das ações, paradoxalmente, ocorre pela descaracterização da atividade-fim da empresa que, neste caso, para baixar custos, rompe com qualquer caráter acadêmico e social de qualidade. O capital fictício alimenta-se de cadeias especulativas, que pouco guardam relação com os atributos da mercadoria, mas com sua representação no mercado. Se a representação (ou capital de marca) 29 pode derivar de uma potente estratégia de marketing, a extração de mais-valia desloca-se das atividades-fim, o ensino, a pesquisa e a extensão, definidos por lei, para o relacionamento com o mercado. E os custos com a força de trabalho, ampliados pela inserção dos trabalhadores produtores de valor de marca, devem ser enxugados nas atividades docentes. É o conceito de lean-production30 penetrando a sala de aula. Pretende-se, com isto, substituir o trabalho vivo docente por trabalho morto, cujo valor é repassado aos equipamentos e materiais pedagógicos veiculados por “novas tecnologias”, cujo uso precisa ser infinitamente maximizado. É esta substituição de trabalho vivo por trabalho morto que exige a descaracterização do trabalho docente, relação presencial, trabalho em ato, para mera transmissão mediada por suportes das novas tecnologias de informação e comunicação. Busca-se incessantemente o corte. A atividade educacional nas IES listadas nas bolsas de valores não pode representar, na ótica gerencialista, gastos que venham a causar preocupações nos investidores. Por outro lado, o capital de marca, parte dos ativos da organização e componente do capital intelectual, não se sustentaria se a própria atividade-fim não guardasse uma margem de lucratividade compensatória aos olhos dos grupos de investimento.

 

Para alcançar este objetivo, traçam-se duas linhas de ação: diminuição dos custos da produção da mercadoria-ensino por sua descaracterização, padronização e produção em escala e busca de financiamento público como bolsas, empréstimos a fundo perdido para capital de giro em condições especiais, por tratar-se de “atividade social”. Interessante observar que, no discurso dos empresários do setor, a educação possui dupla face: de mercado, quando seus porta-vozes visam à desregulamentação, e social, quando visam ao financiamento por fundos públicos. A cadeia fecha-se viciosamente quando os agentes financiadores são também acionistas. Emprestam dinheiro, com incentivo governamental, para gerar mais dinheiro para si mesmos, ou seja, como acionistas de uma IES, e, ao mesmo tempo, agentes financiadores, vêem o capital retornar duplamente valorizado: pela remuneração dos empréstimos e pela valorização das ações que detêm31. Ao pleitearem a abertura pelo governo federal do financiamento estudantil (FIES) para bancos privados, e não somente pela CEF32, os banqueiros acionistas de IES preparam-se para a supervalorização de seu capital numa operação ambígua e ambivalente. Estas são, em resumo, as principais características da nova “governança corporativa” empreendida pelas IES privadas nos últimos anos, no âmbito da infraestrutura.

 

Na próxima seção do artigo, discutiremos esta reestruturação sob a ótica da análise superestrutural. Registrando, contudo, que as duas dimensões são inseparáveis e que, tanto em uma como em outra seção, infra e superestrutura, contam-se elementos de ambas.

 

Eixo 2 - A luta no plano da superestrutura- “Tem que fazer! Se não fizer, não trabalha mais aqui!” 33: profissão docente, concepção de conhecimento e de currículo na “pedagogia micro-ondas”

 

No mesmo contexto pós-Consenso de Washington observamos, no mundo acadêmico, os efeitos da emergência do totalitarismo de mercado em sua face ideológica. A assim chamada “crise de paradigmas” afeta a todos os campos do conhecimento, especialmente ao das Ciências Humanas e Sociais, provocando o rechaço ao pensamento crítico de linhagem marxista, substituindo-o por um ideário relativizante e fragmentário. Agora, a crítica dirige-se não ao modo de produção em sua estrutura, mas às particularidades, aos “desvios” que a humanidade, com os “parcos” e “equivocados” recursos epistemológicos que a modernidade lhe havia legado, não havia impedido. Se a modernidade e sua ciência geraram um mundo de desumanidade, decretemos o fim da ciência da modernidade. Afinal, de acordo com o pensamento emergente - o Pós-Modernismo - não houvera sido o modo de produção, nem suas relações econômicas e sociais, a causa das monstruosidades do século das desgraças, o século XX, mas a Ciência. Então, fim à ciência! E viva o relativismo! Agora, tudo é narrativa, tudo é relativo. Afinal, a pretensão de objetividade da ciência, compreendida numa caricatura mal feita do Iluminismo/Positivismo/Estruturalismo, só nos havia conduzido ao inferno das guerras e destruição ambiental. Claro que a ciência, nesta hipótese, não teria mantido flertes com os conglomerados econômicos, mas agido por conta própria. Cristalino, ainda, para tais pós-modernistas, num anti-historicismo espantoso, que a desumanização tenha início na modernidade.

 

Este pensamento, levado às últimas conseqüências, tem contribuído para formar, nos últimos 15 anos, quando alcança caráter hegemônico na academia brasileira, gerações de novos profissionais, particularmente no campo da Educação, refratários a qualquer luta política na dimensão da crítica do modo de produção, preocupados exclusivamente com particularidades, diferenças, identidades, como se as particularidades não pudessem, ou melhor, não devessem, ser objeto de reflexão específica, porém contextualizada e articulada com o macro. E a contextualização não pode prescindir, ou melhor, fugir com horror, do panorama econômico. Fugindo horrorizados de um suposto economicismo mecanicista, puristas epistemológicos abraçam um neomoralismo relativista tão mecanicista quanto. Os fatos discutidos na seção anterior deveriam ter-nos feito suspeitar que o econômico não morrera, que a luta de classes não tivera fim.

 

Da “crise de paradigmas” decorrem mudanças epistemológicas acompanhadas de consequências para a concepção da pesquisa científica, docência e seu compromisso político. Em suma, emerge o pensamento neoconservador, terreno favorável à desmobilização política e até mesmo à ridicularização das lutas de caráter mais global e de caráter de classe, não particularizadas. Fomenta-se o fetiche de alguns segmentos identitários desconectados do que ocorre além de seu foco particular de luta. Esquecemos, todavia, de acertar o “fim da história” ou o “fim da luta de classes” com o outro lado da luta, o capital, que continua cada vez mais articulado globalmente e como classe. Ligeiramente, construiu-se uma caricatura do que foi a modernidade, do que é o materialismo histórico, do que seja luta de classes, reduzindo-a a momentos de insurreição. Decretou-se o fim de todas as categorias da modernidade e somos convidados a começar a História pelo ano zero da epistemologia. Ou pior, revolve-se o passado em busca de paradigmas tão herdeiros da modernidade quanto o “Mecanicismo” ou o “Estruturalismo”, ou seja, a Fenomenologia. Revestida de neoconservadorismo e em sua tradição mais aristocrática, a Fenomenologia reaparece sob o pretexto de dar voz aos excluídos, mesmo que esta voz se limite a legitimar a condição de exclusão, com pudores contra a tomada de partido ou de afirmação de valores “externos” aos “sujeitos pesquisados”, naturalizando-se a exclusão em sua “beleza narrativa”, em sua “pureza contextual”, relativizando-a em fatores culturais. Ressurge, leve de consciência, uma ciência descritiva e contemplativa, horrorizada ante o risco de macular, com suas próprias “impurezas científicas” e “pretensões de verdade”, o senso-comum, o sagrado senso-comum. Uma leitura menos vulgar da tradição marxista permitiria ver a relevância da cultura em Marx, Engels, Gramsci, Thompson, Hobsbawn e muitos outros. Não precisamos abrir mão da crítica ao modo de produção capitalista para darmos atenção à dimensão cultural, a menos que tenhamos tido uma formação caricata do marxismo e a ela nos tenhamos limitado.

 

A projeção que este linchamento epistemológico sofrido pela tradição crítica materialista alcançou no mundo da produção das idéias, das idéias-mercadorias, das mercadorias-idéias, é alimentado, inclusive financeiramente, por poderosos grupos representantes dos beneficiários da desmobilização política: Fundação Ford e Rockfeller, por exemplo.

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O neoconservadorismo invade a sala de aula a partir da concepção curricular relativista. Sendo tudo relativo, inexistindo verdades científicas e/ou políticas, não havendo partido a tomar, nem posições a assumir, nem modelo econômico a denunciar, nem transformações estruturais a construir coletivamente, o compromisso político do educador como eixo formador do magistério sai de cena. Vemo-lo substituído por uma infinidade de “saberes” particulares, disciplinas instrumentais ou de suposta formação para a “cidadania”, uma cidadania abstrata talvez mais próxima da “cidadania corporativa”, da responsabilidade social, da culpabilização do individuo pelos danos ambientais e pelas epidemias, liberando as corporações de sua responsabilidade. Criancinhas perdem o sono ou têm pesadelo: aprendem já na creche, em uma concepção ambiental ingênua, que vamos todos morrer por falta de água ou por excesso dela. Ou vai acabar a água do planeta e nem podemos mais tomar banho sem culpa, ou as calotas polares vão se liquefazer e vamos todos morrer afogados. A solução é tomar menos banho, principalmente a criança do subúrbio carioca, que convive com 40 graus à sombra e se arrisca a tomar banho de mangueira. “Não, assim o planeta morre seco, menino!” Mas e os parques aquáticos para turistas? E o uso industrial irresponsável de recursos naturais? E a ausência de investimento em desenvolvimento tecnológico para possibilitar a dessalinização das águas marinhas? E se um aluno, num lampejo de inteligência, perguntar: “Ué, professora, mas a água acaba? Nós não aprendemos que ela simplesmente muda ciclicamente de estado físico?”. A falta de questionamento mutila hoje a formação do magistério em sua capacidade crítica e até mesmo cognitiva. É esta consciência ingênua que nossas IES, nossas “universidades micro-ondas” estão forjando nos alunos cursos de Pedagogia, Licenciaturas, Serviço social etc. Esta epistemologia neoconservadora acomoda-se perfeitamente, como peças de um quebra-cabeça, nas mudanças infraestruturais descritas na seção anterior.

 

E se o docente insistir em que a aula padronizada não lhe permitirá exercer a atividade criadora, como ser cognoscente, autônomo? E se insistir em formar novos profissionais e novos seres políticos igualmente cognoscentes e autônomos frente às ideologias neoconservadoras? E se persistir em seu papel de professor, de trabalhador responsável e competente que pensa e projeta sua ação a partir da relação com as particularidades de cada turma, sem perder de vista o conhecimento universal? Se ousar argumentar que os tempos não se movem de maneira retilínea e uniforme no processo pedagógico? Já temos a resposta oferecida pela Hoper Educacional, por meio do Sr Ryon Braga: “Tem que fazer! Se não fizer, não trabalha mais aqui!” Este docente, ao não abdicar de sua condição de educador, ao lutar pela dimensão ontológica de seu trabalho, ao recusar-se à mutilação em uma prática padronizada de transmissão de informações e veiculação de ideologias ingênuas (ou melhor, ideologias astuciosas, mas que, para tornarem-se operantes, necessitam de consciências ingênuas) é desqualificado como alguém refratário às novas tecnologias, desatualizado, jurássico, “autista”, “bicéfalo.” 34

Uma das funções programadas da universidade-micro-ondas é reproduzir a ideologia do empreendedorismo e da empregabilidade, como veículos de legitimação do desemprego. Apóia-se em concepções neofuncionalistas e neoprodutivistas: só se justifica na educação (ou melhor, no ensino) aquele saber que venha a contribuir para a produtividade do mercado, cujo retorno em agregação de valor seja mensurável. Outras dimensões da formação humana são desprezadas como desperdício de custos na universidade-micro-ondas.

 

Sob o pretexto do desenvolvimento das atuais tecnologias da informação e da comunicação, o ideário da universidade-micro-ondas apela falaciosamente para o seguinte silogismo: o uso das novas tecnologias só pode ser adotado sob a concepção pedagógica e epistemológica neotecnicista; os professores resistem. Logo, os professores são refratários às novas tecnologias, são “jurássicos”. Como podemos constatar, a premissa inicial é falsa. Logo, a dedução também o é, tratando-se de um sofisma, de uma falácia classificada em qualquer manual básico de lógica formal. O uso de tecnologias de informação e comunicação nenhuma relação direta de indissociabilidade guarda com a pedagogia tecnicista, como nos querem convencer os ideólogos da universidade micro-ondas. Quando Skinner escreveu sobre tecnologia educacional “35 e quando seu uso foi adotado na América Latina com o objetivo de desmobilização durante as ditaduras militares orquestradas no núcleo do capitalismo, não nos fartávamos ainda das atuais tecnologias, eram as décadas de 1950 e 1960. Trata-se de uma concepção epistemológica e de uma linha da Psicologia da Inteligência e de suas conseqüentes concepções pedagógicas. Menos ainda há relação necessária entre o uso das novas tecnologias da comunicação e a padronização do processo pedagógico ou com a desqualificação do papel formador da docência. Opostamente, são recursos que podem enriquecê-los. A não ser, como é o caso estudado neste artigo, ao serem adotados como recursos para intensificar a extração de mais-valia, para “modernizar” a gestão e o processo do trabalho com olhos fixos na pedagogia do mercado, para substituir trabalho vivo por trabalho morto. As máquinas não falam por si, é seu uso social que lhes determina o caráter.

 

Como uma das formas mais vulgares de se baixar custos é a diminuição do número de aulas remuneradas aos docentes, há, além do (ab)uso das tecnologias de base microeletrônica, outra forma de conseguir este intento sob um pretexto sedutor: a supervalorização da prática, o fetiche do empírico. Ou o apelo ao “trabalho como lócus privilegiado de formação”. Explica-se, assim, o brutal aumento da carga horária de estágio e de atividades de campo nos últimos anos. Com o ganho adicional pelo mercado de ter-se à disposição um contingente significativo de mão-de-obra gratuita, o estagiário que cumpre a exigência do estágio curricular. Na imensa maioria das situações, ao contrário dos estágios contratuais, o aluno do estágio curricular, particularmente na educação e na saúde, atua sem qualquer remuneração. Implica em substituição e precarização da mão de obra em escolas, hospitais, etc. Há, ainda, as atividades de extensão: IES desenvolvem atividades classificadas como extensão, muitas vezes lucrativas, seja do ponto de vista de remuneração pelos serviços prestados à comunidade, direta ou indiretamente sob a forma de renúncia fiscal, seja do ponto de vista de marketing, com o emprego de mão de obra gratuita. As IES não o fazem, entretanto, à revelia da legislação e das normas educacionais, neste caso. Não, ao contrário. Com seus lobbies, têm logrado aprovar, no Conselho Nacional de Educação e no Parlamento, medidas significativas a seu favor. E os dispositivos normativos nacionais fundamentam-se em orientações das matrizes, nos organismos multilaterais. Tanto as diretrizes curriculares aligeirantes e instrumentalizantes, as tendências apontadas no processo de Bolonha, quanto o neofuncionalismo, a desqualificação e desmoralização do magistério, têm emanado de instituições internacionais, como o Banco Mundial e o PREAL36.

 

O PREAL, Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América Latina, entidade vinculada ao Banco Mundial, foi instituído em 1996 por representantes de grandes grupos econômicos, como Citibank, AT&T, Discovery, GE e outros. Assim identificam sua finalidade: “Nós, os empresários, como consumidores do produto da escola, que é a força de trabalho, temos o direito e o dever de definir o que deve ser ensinado na escola e como.”. 37 Dispõem-se a formular o modelo de reforma da educação que deverá ser incentivada pelo mercado na América Latina e oferecem seu apoio aos governos locais para implementá-las. Identificam no sindicalismo docente o principal obstáculo às reformas desejadas pelo mercado, e propõem duas táticas: cooptação e repressão ao movimento sindical38. O sindicalismo docente é, segundo o PREAL, composto por grupos coorporativos poderosos que devem ser neutralizados por meio de políticas de compensação ou cooptação.

 

As organizações sindicais dos professores poderiam ser um desses grupos. Essas agremiações percebem amiúde que as reformas voltadas para a qualidade implicam grandes sacrifícios materiais e políticos de sua parte. Se ficarem contra as reformas, podem solapar seriamente o processo. Por estas razões, aprovação e implantação das reformas dependem da cooperação dos sindicatos dos professores ou ao menos que sejam impedidos de desviar o processo das reformas.”39

Atualmente o PREAL abriga três grupos de trabalho, a saber: Padrões e Avaliação; Autonomia e Gestão; Profissão Docente. Este último dedica-se a mapear e diagnosticar a profissão docente em todos os seus aspectos, propor um modelo de docência, impondo ao continente sua adoção.

 

A estratégia do GT Profissão Docente, dos três o mais farto em publicações e em eventos, tem sido a de desmoralizar e desqualificar o docente da América Latina. Constrói uma caricatura da atuação dos professores, argumentando que as aulas são “declamadas” ao estilo “tradicional”; empreende ofensiva contra planos de carreira derivados de lutas coletivas, especialmente contra a valorização de titulação e tempo de serviço, propondo sua substituição por remuneração baseada no mérito, em consonância com a tendência mundial no neoliberalismo de individualizar a avaliação e a remuneração do profissional, deslocando o foco da negociação coletiva para a perseguição insana de “metas” irrealizáveis, no pior estilo behaviorista estímulo-resposta-reforço; propõe a certificação alternativa por competências e o fim das barreiras que restringem o acesso à carreira a quem tem certificação, ou seja, o fim da regulamentação do exercício profissional. Objetiva à destruição da dimensão coletiva da carreira. Formula textos e informes educativos para nortear políticas públicas, com insistência na desvinculação entre remuneração ou número de alunos em sala e a qualidade do processo ensino-aprendizagem. Tais informes alegam não haver qualquer relação entre as duas primeiras variáveis (remuneração e número de alunos) e a qualidade da formação oferecida, num flagrante alheamento a toda a literatura educacional acadêmica. Para ampliar a desmoralização e vulnerabilizar ainda mais a categoria docente, a fim de veicular o modelo da padronização para economia de escala, alegam serem os professores os piores alunos egressos das escolas básicas, aqueles de pior desempenho nas provas de inteligência, personalidades acomodadas que escolhem a profissão docente por ser previsível e rotineira40. Apelam com argumentação sexista para legitimar a baixa remuneração: “Ademais, há que se considerar o fato de que os professores da região são em imensa maioria do sexo feminino e provêm de lares onde a remuneração se complementa com a do cônjuge.” 41

Estes são os traços decisivos, no plano da superestrutura, determinantes e determinados do/pelo quadro de mercantilização da Educação Superior: substituição dos paradigmas epistemológicos críticos pelo descompromisso político, do sentido de classe pelo sentido de indivíduo ou fração, gerando uma consciência ingênua e despolitizada nos novos professores, consciência esta, terreno favorável para a imposição, sob o disfarce da “modernização tecnológica”, de concepções de trabalho, de trabalho docente, de conhecimento, de ciência, de currículo e do papel social da educação convenientes ao neopragamatismo, neofuncionalismo e neoprodutivismo, que, por sua vez, são ideologias orgânicas do modelo de reestruturação produtiva discutido na seção anterior.

 

Eixo 3 - As ações das organizações do capital e do trabalho nas IES privadas

 

Nesta seção, procederemos a um breve resumo das principais ações que as duas classes em confronto no processo de construção da universidade micro-ondas têm delineado: os empresários da Educação Superior e o sindicalismo docente, particularmente no Rio de Janeiro.

 

Da parte dos empresários, identificamos a ABMES - Associação Brasileira de Mantenedoras da Educação Superior, o Fórum da Livre Iniciativa na Educação Superior e a Frente Parlamentar em Defesa das IES Privadas. Segundo o Deputado Federal João Mattos, presidente da Frente Parlamentar em Defesa das IES Privadas, em pronunciamento durante o II Congresso da Educação Superior Privada em junho de 2009, este agrupamento conta hoje com 214 parlamentares no Congresso Nacional Brasileiro. Com esta base de apoio parlamentar, é possível ao setor não apenas propor alterações a seu favor na legislação educacional, como propor emendas constitucionais que favoreçam a mercantilização da Educação Superior. A Frente esteve presente, pela representação de diversos parlamentares, durante todo o Congresso de Araxá42, declarando afinidade com a ideologia manifestada. O Fórum da Livre Iniciativa na Educação Superior, organicamente ligado à ABMES e às entidades representantes das modalidades específicas das IES, como associações de universidades, de centros universitários, de faculdades isoladas e integradas, é o responsável pela organização, em novembro de 2008 e junho de 2009, dos dois congressos da Educação Superior particular, respectivamente em Porto de Galinhas-PE e em Araxá-MG. Destes congressos, emitiram-se dois documentos finais, as Cartas de Recife e de Araxá. Tanto a ABMES quanto o Fórum notabilizam-se pela virulência com que atacam o Estado Nacional em sua função reguladora da Educação Superior, princípio este consagrado no artigo 209 da Constituição Federal, que admite a educação privada, desde que se cumpra a regulamentação pelo Poder Público. Como bons representantes da economia capitalista, abominam o Estado em sua função reguladora, mas não prescindem de sua forte presença como ente financiador. O mercado educa, mas o Estado, leia-se - o povo brasileiro, financia. Além da internacionalização ao modo do Processo de Bolonha, da ampliação do financiamento público, como expansão do PROUNI para IES inadimplentes com o fisco, expansão do PROUNI para a pós-graduação e para a Educação Profissional, utilização dos recursos do FAT e do FGTS para financiamento de mensalidades, obtenção de financiamento de capital de giro junto ao BNDES, o principal foco nas duas cartas situa-se no campo da acreditação exercida pelo MEC (credenciamento, autorização, reconhecimento, renovação, avaliação, acompanhamento). As entidades patronais posicionam-se frontalmente contra o SINAES, Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, alegando que é necessário e urgente criar uma agência de acreditação própria para o setor privado, controlada pelo próprio setor, completamente independente do poder público e com critérios de qualidade definidos pelo mercado. Para a consecução destas metas (autorregulamentação com financiamento público), vêm desenvolvendo intensa e sistemática atuação frente ao governo (executivo e legislativo). Mantém-se regularmente na agenda das comissões de Educação da Câmara Federal e do Senado, além da própria Presidência da República. A ABMES realiza mensalmente seminários para formular suas políticas para EAD, internacionalização da Educação Superior, flexibilidade curricular, padronização, diminuição do custo-docente etc. Igualmente, as entidades representativas das mantenedoras nos estados, realizam seminários sobre a mesma temática. Resume-se, assim, a atuação política patronal.

 

Da parte do sindicalismo docente das IES privadas, podemos apontar a atuação da CONTEE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino) e dos sindicatos locais, particularmente, neste estudo, o do Rio de Janeiro e Região - Sinpro-Rio. A CONTEE coordena em nível nacional e com articulação com a IE - Internacional da Educação, a Campanha Educação não é Mercadoria, com a finalidade de denunciar e construir contraponto ao processo de reestruturação do setor, em defesa da regulação pública da atividade educacional como direito fundamental do cidadão, recusando a concepção de educação como serviço de mercado. O Sinpro-Rio, engajado na mesma campanha, tem desenvolvido atividades junto aos docentes e ao conjunto da sociedade, como seminários, cursos, publicações, campanha midiática, atividades de mobilização, assembléias e, mais recentemente, a Campanha “Condições de Trabalho e Saúde do Professor”. A campanha é destinada à sensibilização da opinião pública e dos órgãos competentes, como Assembléia legislativa, Câmara Municipal, Conselhos Estadual e Municipais de Educação, com quem o sindicato tem realizado audiências públicas para a denúncia da mercantilização da educação e seus efeitos sobre a saúde física e psíquica do docente. O Sinpro-Rio vem realizando também, desde 2007, as sessões do Fórum da Educação Superior, já em sua sétima edição no segundo semestre de 2009, onde se propõe o diálogo com as entidades da sociedade civil, como representações estudantis, órgãos de classe como conselhos regionais de diversas categorias, Ordem dos Advogados do Brasil etc. Neste Fórum, são discutidos, de forma qualificada, os traços da mercantilização da educação e seus efeitos sobre a formação universitária das atuais e futuras gerações, traçando-se linhas de ação em favor da qualidade da educação superior e valorização do trabalho docente.

 

Pode-se considerar que este conjunto de ações vem resultando num interessante quadro de resistência: em que pese toda a carga repressiva patronal, demissões em massa ocorridas nos últimos semestres aliadas à redução de carga horária dos docentes que permanecem, ameaça de novas demissões, em 2009 os docentes de três IES privadas do Rio de Janeiro decretaram movimento grevista, com expressivo grau de adesão e duração, com apoio dos alunos, demonstrando disposição para não se “microondizar”.

 

Como a atividade do forno de micro-ondas é incompatível com a presença de substâncias metálicas, que produzem, em contato com as ondas, faíscas, podemos interpretar estes movimentos grevistas de 2009 no Rio de Janeiro como ligas metálicas provocadoras da carburação de um movimento que, longe de desencadear incêndio, pode pôr em ação o combustível e acionar o motor da construção do modelo oposto ao do micro-ondas, da afirmação da educação como direito fundamental.

 

Considerações finais:

 

Buscamos, neste artigo, relacionar os eixos político-econômicos, ideológico-pedagógicos e as ações de classe, tanto patronais como docentes, por meio da abordagem metodológica materialista-histórica, a partir da categoria de totalidade. Tomando o concreto como a síntese de muitas determinações, como unidade do diverso, Marx43 sugere um percurso metodológico que favorece a apreensão do sentido de um fenômeno como expressão não somente da justaposição de seus fatores componentes, mas, sobretudo, da interrelação destes condicionantes. Kosik44, na mesma perspectiva epistemológica, nos fornece orientações para a ruptura com a pseudoconcreticidade, para ultrapassarmos a percepção empirista dos fenômenos em sua aparência.

 

Podemos concluir, portanto, que a mercantilização da Educação Superior empreendida nas últimas décadas, no quadro político-econômico neoliberal da mundialização do capital e da reestruturação dos paradigmas da produção e da gestão do trabalho, tem concorrido para a desqualificação docente e para a perda de sentido de seu trabalho, bem como para a descaracterização do processo pedagógico e das relações educacionais. Da construção do coletivo, referência da pedagogia sindical estudada por Manfredi45, que toma a educação como compromisso com a formação do trabalhador crítico, a universidade micro-ondas aponta o rumo do novo individualismo do mercado. Por outro lado, no campo da atuação do movimento docente, temos a formação de uma liga metálica pronta a impedir que o conhecimento e as relações pedagógicas sejam reduzidas às funções de descongelamento, aquecimento e consumo. São dois projetos organicamente vinculados às duas classes sociais fundamentais no capitalismo. Como afirma Gramsci, “As baionetas dos exércitos de Napoleão encontravam o caminho já preparado por um exército invisível de livros, de opúsculos (...)” 46. Temos, da parte da ação hegemônica, o exército de “livros” e “opúsculos” do mercado imposto com seu projeto de formação de consciência ingênua permeável a este exército. Vemos, por outro lado, sinais de que a liga de metais preciosos que constitui a classe trabalhadora pode penetrar neste micro-ondas e mudar seu elemento radiador, irradiando para o processo educacional a energia formadora que recupera o trabalho em seu sentido mais nobre, de atividade criadora, ontologicamente determinante e produtora de uma sociedade justa.

NOTAS:


 

1 Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, Desigualdade Social e Dualidade Escolar: Conhecimento e Poder em Paulo Freire e Gramsci, Petrópolis,RJ,Vozes,2000.

 

 

2 “As afirmações do liberalismo são idéias-limite que, reconhecidas como racionalmente necessárias, tornaram-se idéias-força, realizaram-se no Estado burguês(...)”. Antonio Gramsci, Escritos Políticos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,2004, p 79.

 

 

3 Ver, a respeito destes conceitos, Dermeval Saviani, História das idéias pedagógicas no Brasil, São Paulo, Autores Associados, 2008, 2ª Ed revista e ampliada.

 

 

4 György LUKÁCS, Ontologia del ser social: El trabajo,Buenos Aires, Herramienta,2004.

 

 

5 Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, op cit.

 

 

6 Neologismo que designa a adequação do produto ao gosto pessoal do cliente. Neste caso, o “cliente” é o capital que se autoproclama consumidor do “produto da escola”, a força de trabalho. Ver, a respeito desta definição, os documentos do PREAL analisados em: Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, Entre a cooptação e a repressão: capital e trabalho nas reformas educacionais na América Latina, EPSJV, Trilhas da Identidade, Rio de Janeiro, Ed Fiocruz, 2004.

 

 

7 Os quatro pilares no Relatório Delors: aprender a ser, aprender a conviver, aprender a aprender ou a conhecer, aprender a fazer. No contexto analisado, estes pilares se subordinam à lógica da divisão internacional do trabalho no capitalismo contemporâneo e em sua expressão pedagógica, a pedagogia das competências.

 

 

8 Ângela SIQUEIRA, O Processo de Bolonha e as políticas para a educação superior, Conferência no Seminário Latinoamericano Universidade, Crise e Alternativas, UFRJ, julho de 2009.

 

 

9 Refiro-me à apresentação da consultoria Sungard Higher Education, especializada em internacionalização da Educação Superior, em evento promovido pelo Sindicato de Mantenedoras da Educação Superior do RJ, SEMEERJ, em novembro de 2008. Na ocasião, a principal justificativa para a internacionalização foi a busca do docente de menor custo onde quer que ele estivesse.

 

 

10 Ricardo ANTUNES, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, São Paulo, Boitempo, 2006.

 

 

11 Adoto o conceito de território formulado por Milton Santos, que o considera em seu uso social. Milton SANTOS, Pensando o espaço do homem, São Paulo, Hucitec, 1982.

 

 

12 Magna Corrêa de Lima DUARTE e Paulo César Azevedo RIBEIRO,Panorama da Educação Superior Privada no Rio de Janeir. Disponível em: http://www.sinpro-rio.org.br/Ed_superior/panorama.html acesso em 11/07/2009.

 

 

13 Valor divulgado por Rodrigo CAPELATO, presidente do SEMESP, Sindicato das Mantenedoras da Educação Superior do Estado de São Paulo,em conferência no II Congresso da Educação Superior Particular, Araxá, MG, junho de 2009.

 

 

14 ib

 

 

15 Ver nota anterior

 

 

16 Temos atualmente no Brasil cerca de 200 universidades corporativas, grande parte atuando em convênios com as IES, especialmente no segmento da graduação e pós-graduação. Ver, a este respeito, Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS e Nayla Cristine Ferreira RIBEIRO, Formação de trabalhadores no modelo de Educação Corporativa: homens ou máquinas?, Revista Educação Profissional:Ciência e Tecnologia, Brasília, Senac-DF, vol 3. N 1, jul-dez 2008, PP 109-118.

 

 

17 Sadi Dal Rosso, Mais Trabalho! A intensificação na sociedade contemporânea, São Paulo, Boitempo, 2008.

 

 

18 Magna Corrêa de Lima DUARTE e Paulo César Azevedo RIBEIRO, op. cit.

 

 

19 Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, A Escola como cortina de fumaça: capital e trabalho na reforma do Ensino Médio, Rio de Janeiro, UFRJ, 2002, Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Orientada por Raquel Goulart BARRETO.

 

 

20 Ver nota 17

 

 

21 De acordo com Marx, na dialética entre produção, circulação, distribuição e consumo, a produção, ocupando papel preponderante, não cria somente um objeto para o consumidor, mas um consumidor para o objeto. Karl MARX, Para a crítica da Economia Política,in Karl MARX, Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p 110.

 

 

22 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

 

 

23 Transcrição da fala do Sr Antonio CARBONARI NETTO, diretor-presidente do Grupo Anhanguera Educacional, em apresentação no II Congresso da Educação Superior Particular, Araxá-MG, junho de 2009.

 

 

24Transcrição da apresentação de Ryon BRAGA, representante da consultoria Hoper Educacional, em apresentação no II Congresso da Educação Superior Particular, Araxá-MG, junho de 2009.

 

 

25 Ib

 

 

26 Ib

 

 

27 Ib

 

 

28 Sigla do original inglês para “oferta pública inicial” de ações, que designa a abertura de capital e listagem de uma determinada organização na Bolsa de Valores.

 

 

29 O conceito de capital de marca, integrante da fórmula do “capital intelectual”, é discutido criticamente em: Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, A teoria do capital intelectual legitimando o conformismo psicofísico do trabalhador de “novo tipo”, in Antonia SOUZA, Enéas ARRAIS NETO et alli, Trabalho, capital mundial e formação dos trabalhadores, Fortaleza, Ed SENAC-CE e Ed UFC, 2008, pp 329 a 346.

 

 

30 Termo utilizado na literatura sobre gestão organizacional, designando a produção enxuta, corte de custos, traços característicos do modelo de acumulação flexível.

 

 

31 Fundamento-me na transcrição de gravação da fala do vice-presidente do Itaú-Unibanco, Márcio de Andrade Schettini, na Conferência de abertura do II Congresso da Educação Superior Privada, Araxá-MG, junho de 2009.

 

 

32 Esta é uma das demandas da Carta de Araxá, documento final do II Congresso da Educação Superior particular, Araxá-MG, junho de 2009

 

 

33 Conforme citado na seção anterior, frase-símbolo da pedagogia-micro-ondas, pronunciada pela consultoria Hoper Educacional no congresso mencionado na nota acima.

 

 

34 Cito aqui a transcrição da gravação da fala da consultora da FIESP, Guiomar Namo de Mello, que atribui ao docente a condição de autista, bicéfalo, jurássico e outras qualificações menos elogiosas, ao referir-se à resistência dos docentes às mudanças, à adaptação ao mercado. Transcrição do II congresso da Educação Superior Particular, Araxá-MG, junho de 2009.

 

 

35 B.F.SKINNER, Tecnologia do Ensino, São Paulo, Editora Herder. 1972, 260 p.

 

 

36 Sobre o PREAL, ver: Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, Entre a cooptação e a repressão:capital e trabalho nas reformas educacionais na América Latina,In: EPSJV (org),Trilhas da Identidade, Série Temas do Ensino Médio, Rio de Janeiro, Ed FIOCRUZ, 2004.

 

 

37 PREAL, apud Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, Ib

 

 

38 ib

 

 

39 PREAL, apud Aparecida de Fátima Tiradentes dos SANTOS, op cit, p 54-55.

 

 

40Claudio Moura CASTRO e Gustavo IOSCHPE, A remuneração dos professores na América Latina: É baixa? Afeta a qualidade do ensino? Preal Documentos n37, Washington, janeiro de 2007.

 

 

41 ib

 

 

42 Ver notas anteriores sobre o congresso.

 

 

43 Karl MARX, op cit, p.

 

 

44 Karel KOSIK, Dialética do Concreto, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, 2ª Ed.

 

 

45 Silvia MANFREDI, Educação sindical, entre o conformismo e a crítica, São Paulo, Loyola, 1986.

 

 

46 Antonio GRAMSCI, Escritos Políticos, vol 1, São Paulo, Civilização Brasileira, 2004, p 59-60