Entrevista com Theotônio dos Santos
Rio de Janeiro, 02 de Julho de 2009.
(Ciência & Luta de Classes) - Qual a sua origem e formação. Gostaríamos que você falasse quais foram as suas principais influências e como se deu sua aproximação com o marxismo.
(Theotônio) - A minha formação se desenvolve em Minas Gerais, me interessei pelo marxismo ainda muito jovem, por circunstâncias que não sei explicar. Aos 12 anos, criamos um jornalzinho, não na cidade em que nasci, mas na cidade em que vivi por muito tempo, Muriaé, até a adolescência. O jornalzinho se chamava A Voz Juvenil. O grupo que o criou era todo formado por companheiros que tinham uma preocupação social grande e algum contato com o marxismo. Na época, sem que eu soubesse muito bem, ajudaram a desenvolver o jornal e o influenciaram duas pessoas que hoje sei que eram comunistas, mas na época não se abria o jogo, porque o partido era clandestino na década de 50.
Depois eu fui expulso da escola por causa do jornal, mas meu pai conseguiu que eu fosse para o Colégio Granbery, em Juiz de Fora, um colégio metodista, cujo diretor geral era americano, progressista, liberal, mas o diretor propriamente era anti-socialista. Entretanto, curiosamente, a filha desse último era muito livre, o que causava certa estranheza. Foi nesta época que tive os meus primeiros colegas abertamente comunistas, abertamente para mim, sobretudo um deles, Jacob Goldberg, com o qual nunca mais tive contato. Hoje ele é um psicanalista. Ele me passava literatura, era o contato [do partido] naquela época, eu tinha uns 15 anos e havia esses canais. Mas eu tinha um interesse muito amplo ainda, eu não tinha uma definição realmente pelo marxismo. Lembro-me inclusive que um de meus amigos de Muriaé, muito ligado a mim, e que na época veio para o Rio de Janeiro, eu tinha uns 16 ou 17 anos, ele me disse que estava orientado pelo marxismo-leninismo e eu disse que não estava na época de me definir por essas coisas ainda. Nessa época fui para Belo Horizonte estudar em um colégio estadual.
Você vê que apesar de ser um ambiente repressivo já havia canais que permitiam que as pessoas tivessem uma aproximação com o marxismo, quando tinham um interesse muito grande, porque este contato realmente era produto de um interesse meu e de um grupo. Mas eu só fui me aproximar do marxismo, realmente, com o estudo, uns quatro ou cinco anos depois, porque primeiro fiz um estudo amplo da filosofia. Eu vou chegando ao século XX e vou me definindo, já que, para poder ter uma visão crítica do século, eu tinha realmente que passar pela sistemática do marxismo.
Eu fiz um estudo sistemático, por volta dos meus 20 anos. Comecei mais pela parte filosófica, tinha uma coleção chamada Lectures philosophiques de Marx, que era dividida em dois volumes, e depois li as obras econômicas, O Capital. A partir daí, quando eu já estava na universidade, estudando na faculdade de economia de Minas Gerais, que tinha uma característica muito importante, muito decisiva, fui para lá por recomendação de José Nilo Tavares, pois lá, desde o primeiro ano na faculdade, o aluno recebia uma bolsa de estudo que era muito boa, tinha o valor de um salário mínimo da época, o salário mínimo era bastante razoável na década de 50 até o período de Jango. Em decorrência da bolsa, nós tínhamos, talvez, um dos melhores locais de trabalho que eu já tive na minha vida. Naquele ano, nós tínhamos um grupo com bolsa de uns cinco ou seis em ciências sociais, mais uns cinco ou seis em economia, uns três ou quatro em administração, ao todo uns doze alunos que tinham bolsas. Tínhamos um local com máquinas de escrever, impressionante, eu nunca mais vi algo parecido. Depois eu ganhei uma sala sozinho, com banheiro, todos os livros, máquina de escrever.
O nosso grupo era formado por Betinho, Simon Schwartzman, Antonio Otavio Cintra, Flávio Pinto Vieira, era um grupo pesador. Nós desenvolvemos seminários de leitura, filosofia e ciência política e, nesta fase, já tínhamos optado politicamente, uma opção difícil, porque o Partido Comunista estava naquela luta interna, passando para a posição nacionalista e vindo daquela imposição do Manifesto de 50, que era um posição ultra sectária, chamando uma revolução sem ter uma base real para essa revolução. Por outro lado, a briga interna começa em 1954 com a crise do stalinismo e vai dividindo o partido. É formado o grupo de O Nacional, do Agildo Barata, um grupo nacionalista com relações mais amplas, até que, em 1958, o partido se define na linha nacionalista, muda o nome do partido, essas coisas que vão reforçar a linha de tipo nacional democrática do partido em aliança com a burguesia nacional. Se bem que houve certas discussões se a Frente Nacional devia aceitar a hegemonia da burguesia ou se a classe operária tinha que ser hegemônica nesta frente nacional democrática. Neste momento, nós temos duas fases de definição: a primeira que era preciso se aproximar das massas socialistas e do Partido Trabalhista, que tinha perspectivas nesse sentido, e então nós formamos uma juventude trabalhista, da qual surgiram posteriormente, em 1961, a Política Operária, POLOP, em aliança com a Voz do Povo, e a Ação Popular, formada pelo grupo católico de esquerda, que militava conosco, em 1962. Na segunda fase, o Partido Comunista tinha se dividido e forma a corrente pró-chinesa, que ficou com o nome de Partido Comunista do Brasil (PCdoB), contrariando a vontade deles, já que queriam levar o nome do partido, mas eram um grupo minoritário e, por isso, não conseguiram.
Nesta época, surgiu também o Movimento Radical Tiradentes, com o Julião, com o qual não tínhamos desenvolvido propriamente uma militância, mas, como militávamos nas Ligas Camponesas e havia uma mistura muito forte entre as ligas e o movimento Tiradentes, tínhamos um certo contato. Em 1962, pela POLOP, fizemos a proposta de uma frente de esquerda, que seria uma união da esquerda revolucionária, se bem que os companheiros do PCdoB mantinham uma linha nacional democrática; com os companheiros da Ação Popular, que já propunham um caminho para o socialismo, e com os companheiros do Movimento Radical Tiradentes, que tinham uma postura nacional democrática em função da reforma agrária, mas que, diante do exemplo da Revolução Cubana e a partir desta, havia uma certa propaganda para promovê-la em termos socializantes.
Depois veio o fenômeno Brizola, que foi muito importante naquele momento, pois Brizola parou o golpe de Estado em 1961 com uma mobilização militar muito forte, não só ganhou o III Exército e a polícia militar, bem como distribuiu armas para a população formar milícias. Isso agregava ao movimento de esquerda, lembrando que o comunismo não era algo de que podíamos falar muito. Ainda assim, chegamos a um momento de grande agitação de massa, em termos de se pensar que o socialismo já estava a caminho. Vivíamos um momento de grande afirmação revolucionária das massas que foi muito importante na minha formação e, ao mesmo tempo, existia uma proposta política, através da Política Operária, e também uma negociação com os partidos de massa, como o Partido Trabalhista e o Partido Socialista. Nós não tínhamos a estratégia de infiltração que os companheiros trotskistas sempre usavam como um método de trabalho, mas tínhamos, um pouco espontaneamente, uma certa política deste tipo, porque nós tínhamos gente dentro do Partido Trabalhista, dentro do Partido Socialista, aqui no Rio de Janeiro se lançou a candidatura do Sérgio Magalhães, dentro do Partido Socialista, contra o Lacerda. Foi uma tentativa de lançar uma candidatura de esquerda. Em São Paulo também se lançou uma candidatura de esquerda pelo mesmo partido. Para prefeito de Belo Horizonte nós chegamos a ter uma candidatura dentro do Partido Trabalhista bastante de esquerda, mas acabou sofrendo uma intervenção da direção nacional que colocou outro, sem nenhuma expressão, em seu lugar. O nosso candidato era o Fabrício Soares, uma figura importante com uma definição de esquerda.
Enfim, a nossa ideia era acompanhar o processo eleitoral pela esquerda, claro que buscávamos uma certa viabilidade política. Lançamos uma candidatura para prefeito em Belo Horizonte somente para marcar posição, mas o que queríamos de fato era uma candidatura com viabilidade política maior, que correspondesse ao avanço em marcha pelo qual o país estava passando. Mas, em outro plano, estávamos com o Partido Comunista. Entre nossas candidaturas havia, por exemplo, a do Marechal Lott, uma candidatura complicadíssima. Lott, embora tenha tido um papel positivo para garantir a dimensão democrática no país, mantinha um ódio pelo comunismo, o que tornava a nossa situação complicada, pois apoiávamos um candidato que se colocava contra o comunismo. Sua filha, ao lançar candidatura como deputada e ter apoio dos comunistas, foi fortemente questionada pelo pai. Essa era a atmosfera da época.
Estava colocada, antes do golpe de Estado, a ideia de partir para o movimento armado. Havia, por exemplo, o Julião, que mantinha uma relação com os cubanos, com a pretensão de criar zonas camponesas de maior intervenção, grupos armados ainda de forma muita precária, e o Brizola que, com os grupos de onze, aspirava a criar, de alguma forma, uma base de resistência contra um golpe de Estado que poderia ser o começo de uma luta mais profunda pelo socialismo. Como ele já havia armado grande parte do Rio Grande do Sul durante a resistência aos militares em 1961, o processo já assumira uma dimensão de massas, não eram grupos isolados. As tentativas sucessivas de golpes já demonstravam que a luta assumiria uma forma armada.
Em 64 tínhamos também uma forte presença entre os militares, como o grupo dos sargentos que veio a formar a Associação Nacional dos Sargentos e mantinha uma relação muito forte com a Política Operária. O presidente deste movimento inclusive era nosso aluno na Universidade de Brasília, sem falar dos oficiais de esquerda, que formavam um grande grupo. Com o golpe de Estado, mais de seis mil destes últimos foram expulsos das Forças Armadas. Era realmente um movimento significativo, muito importante.
Tudo isso nos levou a um processo de interação entre a formação intelectual bastante séria e aprofundada, tendo como referência inclusive um seminário de O Capital. Naquela época poucos liam O Capital, os marxistas liam Lênin, dois ou três livrinhos, O Manifesto do Partido Comunista.
(CL&C) - Até porque a primeira tradução foi feita em 68.
(Theotônio) - Tinha esse problema também, alguns intelectuais liam em espanhol, esporadicamente um ou outro operário lia. O Capital não era livro de leitura. Nós começamos, mais especificamente com o professor Paul Singer da USP, um dos poucos marxistas que existiram realmente dentro do grupo paulista, ele era membro da POLOP, foi uma boa oportunidade para termos uma ideia do seminário. Posteriormente desenvolvemos em Brasília um grupo do seminário O Capital em 61, 62, com Perseu Abramo, Ruy Nobrega, Ubertino Rodrigues e outros companheiros.
O marxismo como pensamento foi sendo incorporado de uma maneira bastante séria, no grupo católico com a presença do Betinho, Vinícius Caldeira Brant. Tínhamos uma leitura do marxismo, mas não de O Capital. Era uma leitura crítica, dentre eles havia dominicanos como o Frei Mateus, que foi presidente da Ordem, fizeram uma leitura que desenvolveu um catolicismo de esquerda. Foi feita também uma leitura muito sistemática de um livro muito importante sobre o conceito de alienação em Marx entre os católicos, eu também li, discuti com eles. Tínhamos também seminários com o professor de filosofia de origem católica sobre Hegel e Marx.
Havia um clima intelectual interessante [em Brasília] que não havia no Rio e em São Paulo. Aqui no Rio, por exemplo, existia o ISEB [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], um grupo mais ligado às questões existencialista, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto; e nós tínhamos um grupo muito diferenciado na formação intelectual, com uma peso católico muito grande, lá em Minas, gente de formação tomista em geral, apesar de que tínhamos um professor de filosofia com muita influência sobre nós que dava uma ênfase enorme a Kant, mas que tinha que se declarar tomista para poder dar aulas. Quer dizer, você, em pleno século XX, ainda tinha uma concepção filosófica da Idade Média entre os professores de filosofia, muitas vezes imposta. Nosso professor, que organizou o seminário sobre Hegel, possuía uma formação muito profunda em São Tomas de Aquino, o próprio Veloso, o que era kantiano, dava como base o texto de um filósofo tomista.
Era um ambiente intelectual muito interessante, porém muito arcaico, mas o nosso grupo evoluiu, não apenas no campo do marxismo, como também no da arte e da literatura, com um comportamento radicalmente inovador. Tínhamos um grupo chamado Complemento, uma revista Complemento, que ficou conhecido como “geração complemento”, todos ali tinham como referência um pensamento muito avançado. Nós tínhamos um centro de estudo de cinema e um revista de cinema inclusive. Quando Glauber [Rocha] apareceu em Minas conversamos com ele, eu ainda era novo na época, tinha 19, 20 anos e ele apareceu fazendo cinema com uma câmera na mão, ninguém acreditava que pudesse fazer cinema e acabou fazendo, impressionante a sua genialidade. Talvez por haver esse ambiente conservador, havia uma postura radicalizadora, por outro lado.
No teatro, nos estávamos fazendo Becket, teatro sério; nós tínhamos no balé o Klaus Vianna e a Angel Vianna, que foram os renovadores da dança no Brasil, uma dança moderna, avançada. Eram pessoas muito críticas. A nossa aproximação com o marxismo foi dentro desse ambiente intelectual, poderíamos dizer de vanguarda, intelectualmente. Politicamente, ao criar essa organização como a POLOP, nós nos antecipamos à grande parte da crítica do pessoal do Partido Comunista, fora da linha trotskista, que era uma linha sectária, fechada. A nossa crítica era muito mais ampla, mais trabalhada, muito voltada também para realidade brasileira. Não se tratava de fazer uma crítica só socialista, mas uma crítica muito voltada para a experiência brasileira, com muita pesquisa sobre o Brasil. Era um processo muito sui generis, na minha opinião. Depois no exterior eu vi que essas coisas estavam passando generalizadamente. Na América Latina, por exemplo, o processo de transição cubana foi de uma riqueza tremenda. Existia um dinamismo do debate intelectual, político, filosófico, muito impressionante nos anos 60, com essa ideia de articular a nossa própria realidade com um debate de ideias mais amplo. No caso do seminário de O Capital, quando Che Guevara é nomeado como ministro da economia, uma das primeiras coisas que ele fez foi criar um seminário de leitura econômica, porque ele mesmo confessou que não entendia nada de economia. Há uma história de que durante uma reunião, logo após a revolução, levantou o braço ao ouvir perguntarem se havia algum economista na sala. Mais tarde, Fidel indagou “eu não sabia que você era economista também, você não é médico?” Então, Che respondeu “Economista? Eu pensei que tinham perguntado se tinha algum comunista!” [risos]. Che começou a trabalhar com economia e trouxe um excelente tipo de que teve muita influência na América Latina, com essa leitura do capital, era um professor espanhol. Um grande professor, que organizou o seminário, começou a fazer grandes discussões sobre o caminho econômico de um socialismo voltado para a condição básica dos estímulos morais e também com a ideia de uma estrutura socialista unificada com uma contabilidade única a nível nacional, não de empresas. Ninguém tinha tido coragem de propor uma coisa tão avançado de certa forma, e com muita dificuldade de se aplicar na verdade, apesar da imensa dificuldade de se aplicar.
(C&LC) - Você falou rapidamente sobre o golpe de 64, eu queria, para completar essa segunda questão, que você falasse do exílio e do retorno, pois eu acho que assim nós teríamos uma ideia melhor da sua formação e da sua trajetória na militância política.
(Theotônio) – O exílio foi muito importante, porque ele abriu um campo de conhecimento que nós não tínhamos. Ademais, de uma experiência socialista muito mais avançada do que a que nós tínhamos aqui, que foi a experiência chilena. A definição dos partidos, a formação partidária, o tipo de militância, eram muito mais avançados. O exílio foi uma escola muito importante, não só para mim, mas para todo o nosso grupo, para todos que eram mais jovens naquela época. Os mais velhos tinham seus problemas de adaptação, porque eram pessoas que já estavam com a carreira feita, com objetivos dentro do Brasil que foram impossíveis de dar continuidade. Nós, por outro lado, que estávamos começando, entravamos em outra fase de luta, que é muito interessante.
Na militância aqui, nós da POLOP que tínhamos a função de Direção Nacional, possuíamos uma experiência, na luta, muito ampla. E, ao mesmo tempo, como nós éramos uma organização muito pequena, nós tínhamos um trabalho de base muito grande. Não tínhamos gente suficiente para organizar tudo. E isso ajudou muito, essa experiência de estar nas favelas, nas fábricas, nos sindicatos, no campo. Nós formamos as primeiras Ligas Camponesas em Minas Gerais, claro que um pouco orientados pelo Julião. Ou seja, nós tínhamos uma experiência de base muito forte e ao lado de uma experiência de orientação, discussão da luta no seu conjunto, da estratégia nacional no plano filosófico e teórico. Tínhamos influência da base até em cima. Eu e minha mulher na época, a Vânia Bambirra, morávamos nas favelas, estávamos lá todo dia. O ambiente propiciava uma formação muito ampla.
Quando a gente vai para o exílio, existe um problema imediato, porque chamam a sua atenção para que você não se envolva na política local. Mas o processo chileno era tão dinâmico, tão forte, que acabei aos poucos me envolvendo a ponto de, em 1973, estar na primeira lista dos procurados pela ditadura. A mesma lista que estavam os dirigentes das organizações populares, eu e mais três estrangeiros. Existiam mais estrangeiros, tanto que no campo do Estádio Nacional a participação dos estrangeiros presos ali era enorme, havia muitos brasileiros. Nós devíamos ter alguns milhares de brasileiros, era um fenômeno. Nós fomos nos aproximando da luta de massa pouco a pouco, porque não podíamos fazer isso. Eu fui chamado, logo no primeiro ano, pelo Ministério do Interior. Eles disseram: “Nós sabemos que você esteve Concepción, onde estava se formando o MIR”. Me disseram que eu não podia entrar lá. Era o governo democrata-cristão. Mas continuei... O processo foi se desdobrando para uma postura socialista. Tivemos muita influência na parte do programa do partido, fizemos a Unidade Popular. Então, havia um vínculo muito grande com o processo político do dia-a-dia. Continuamos, portanto, muito mais no plano teórico e estratégico, mas também com o contato de base bastante forte, não tanto quanto tínhamos no Brasil.
Nós tínhamos um problema, nós queríamos dar uma resposta aqui no Brasil ao golpe e o movimento de massa estava avançando, em 67 e 68. Depois a clandestinidade virou quase total. Depois do AI-5 prenderam todo mundo. Durante esse período todo nós mantivemos forte ligação com o Brasil. Em 1970, eu, o Ruy Mauro e a Vânia estávamos de malas prontas para voltar ao Brasil. No momento em que a Unidade Popular tinha ganhado a eleição, ou seja, tínhamos tarefas enormes lá no Chile, mas, devido ao processo brasileiro, nossas raízes, tivemos que voltar. Ocorre que, cada vez que vinha um companheiro para preparar a nossa volta, ao chegar ao Brasil, caia, e eram membros da Direção Nacional. Chegávamos a perguntar se eles tinham condições de segurança para voltar. E eles diziam que nós tínhamos as condições de segurança da Direção Nacional. Todos da Direção Nacional caíram, caiu o grupo que vinha de Cuba, o único que sobrou foi o [José] Dirceu. Mais tarde eu fiquei sabendo que nesse momento, em 1970, nós tínhamos alguma infiltração. Eu fui envolvido nisso, uma época fui considerado chefe do terrorismo no Brasil. Imaginem quando os prendiam aqui no Brasil, muitos eles matavam. Havia uma infiltração muito grande, como foi o caso do [cabo] Anselmo, que era o cara que recebia a todos. Então era uma coisa muito brutal, deste ponto de vista. Estou falando isso para chamar a atenção para o fato de que a situação brasileira continuava a ter muita importância, apesar de todo o processo chileno.
Eu era membro do Partido Socialista, o Ruy Mauro era dirigente do MIR, a Vânia não quis optar por entre os dois, mas o pessoal do MIR tinha muita aproximação com ela. Dentro do Chile nós tínhamos um trabalho muito importante de tentar unificar a esquerda. Nós chegamos a criar uma Frente das esquerdas todas, com vinte e três organizações que se reuniram. Não sei qual o milagre que houve (risos), primeiro para juntá-los e depois para mantê-los unidos. Interessante que dentro da coordenação disso estava um membro do Partido Comunista; estava o [José] Serra, pela Ação Popular Marxista-Leninista, fração que tinha se tornado partido marxista-leninista. Éramos um grupo de mais ou menos quatro ou cinco que tínhamos a coordenação da Frente, neste grupo tinha o Almino Afonso, que tinha sido Ministro do Goulart, ou seja, era uma figura importante da esquerda e do Partido Trabalhista. Isso nos permitiu desenvolver um trabalho de denúncia muito forte. Não só dentro do Chile, mas também a nível internacional, porque o Chile recebia pessoas do mundo inteiro, havia uma efervescência enorme, dentro do Chile você podia irradiar as pessoas para toda parte. Uma vantagem era que eu tinha estado nos Estados Unidos, em 1969, desenvolvendo assim um vínculo com a esquerda americana, com os setores da esquerda que naquele momento estavam se aproximando do Partido Democrata. Sendo assim, havia ali uma possibilidade de difundir, dentro dos Estados Unidos, uma ataque muito forte contra a ditadura brasileira, foi um trabalho muito exitoso. Estavam envolvidos os Partidos Democratas, Sociais Democratas, os Partidos de Esquerda, os Partidos Comunistas, os Partidos da Esquerda Revolucionária, mas eles conseguem formar a candidatura do McGovern, que obteve cerca de 30% dos votos. O Partido Democrata se dizia meio liberal, meio de esquerda... chegamos a ter realmente um ambiente contestador muito forte no mundo inteiro.
O meu exílio foi um exílio muito militante. Já depois do golpe no Chile, que eu tive que me exilar na embaixada do Panamá, fiquei seis meses, até me darem salvo-conduto para sair. Fui para o México e lá tive que restringir mais as atividades de militância, porque a repressão no México era mais intensa. E o processo mexicano não tinha alcançado essa dimensão de luta social, que o Chile alcançou. Mas o México tinha também vários movimentos armados importantes, até a década de 70. E, no mundo intelectual, um grande debate em torno dos problemas econômicos, políticos e sociais e por isso também foi uma experiência muito intensa, mas sem o desdobramento que teve no Chile. Quando vem a anistia, o processo mexicano, por mais interessante que fosse, não nos segurou, chegamos aqui no dia da anistia. Eu vim primeiro e a Vânia veio depois com o Betinho. O Ruy Mauro demorou mais tempo para voltar. Mas nós já estávamos formando o Partido [PDT] junto com o Brizola.
(C&LC) - Eu gostaria que você falasse um pouco sobre o surgimento da Teoria da Dependência, já que é um ponto importante na sua trajetória e que possui um reconhecimento internacional.
Nesse ambiente todo, digamos, político, teórico e ideológico, o nosso debate ocupava um plano muito amplo, em que nós assimilamos, defendemos e organizamos nossa própria versão do marxismo. Muito poucos teóricos partiram de um estudo tão aprofundado de O Capital. Depois da década de 70, apareceram muitos. Havia, já na década de 50, uma busca do marxismo de um ponto de vista da origem do marxismo, lendo as obras do Marx, as críticas, tendo como O Capital a grande articulação, tanto do ponto de vista metodológico como teórico. O Capital é realmente uma alternativa de pensamento radical, profunda, frente ao desenvolvimento do pensamento burguês. Isso nos colocava em uma posição de crítica, no debate brasileiro, como organização política, mas também como grupo acadêmico. Nós nos juntamos academicamente, basicamente na Universidade de Brasília. O Departamento de ciência política tinha como diretor o Vitor Nunes Leal, que era uma figura importante. E o Darcy [Ribeiro] que era uma outra figura muito importante por sua referência e ele quem convidou o Andre Gunder Frank. Tínhamos também os seminários com o André, ele trazia a experiência dele da escola de Chicago, do grupo econômico da direita, com uma visão muito crítica, e dos grupos desenvolvimentistas. Tivemos um curso em Brasília que o Darcy arrumou com a CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina da ONU], que era onde estava a Maria Conceição, o Castro e tinha também o grupo do Chile. Eu tinha um contato muito amplo com todos esse grupo. Também tínhamos um bom contato com o grupo de São Paulo, que nós conhecemos no Congresso de Sociologia que houve em 1959, em Minas Gerais. Tínhamos muita amizade com [Octavio] Ianni, Fernando Henrique [Cardoso] e [Francisco] Weffort, depois o Paul Singer...
Nós estávamos diante de varias correntes de pensamento que estavam se formando: o ISEB... Eu era muito amigo do Guerreiro Ramos, ele foi meu padrinho de casamento. Isso demonstra a relação estreita com o grupo daqui. O André Gunder Frank foi muito importante, porque ele trouxe para nós uma experiência internacional muito direta. Inclusive um contato que já tínhamos com marxismo americano, que também foi muito importante para nós: o Paul Sweezy e o [Paul] Baran, todo o grupo do Monthly Review. Quando eu estava na faculdade de economia já havia esse contato, pessoas deles viam aqui. O André era muito ligado a tudo isso, o seminário que nós discutimos fazia justamente uma crítica ao estrutural-funcionalismo, que era o pensamento básico da teoria do desenvolvimentismo. A CEPAL não era suficientemente crítica nisso. Ela tinha uma postura do tipo keynesiana, ela tava muito mais próxima das ambições e da programática da nossa burguesia nacional, não propriamente do movimento operário, dos trabalhadores, isso não fazia parte do universo deles. Toda a questão do sujeito do processo estava no plano burguês. Tinha uma linha nacional-democrática. Ao trazermos essa crítica e entrarmos nessa discussão política, ao mesmo tempo fazíamos a leitura de O Capital, pensando no marxismo. Nós entramos num ponto crítico muito avançado.
O André Gunder Frank antes de morrer esteve no Brasil em 2003 em Brasília e, já sabendo que estava no final da vida, fez uma exposição afirmando: “A teoria da dependência nasceu aqui! Aqui na Universidade de Brasília”. A maior parte do pessoal que escutava nem sabia o que era teoria da dependência. “Eu fui professor aqui em Brasília da Vânia, do Theotônio, do Ruy, do Paul, depois eles me superaram”(risos). “Nos é quem forjamos as primeiras ideias”.
E realmente é a interação entre essa problemática do debate com o estrutural-funcionalismo na França, o debate nos Estados Unidos, o debate com a CEPAL, e todo o seu pensamento, com o ISEB, tinha avançado muito, mas também ficava no plano nacional-democrata, incluindo o povo como fenômeno, mas como um fenômeno de apoio à luta nacional democrática. E o Partido Comunista, nossa luta com o Partido, em que havia uma corrente que dizia: “Não, nós temos que disputar a hegemonia, mas a frente é nacional-democrática, a burguesia é uma força fundamental”. Então, diante do processo cubano, que também se radicalizava, nós entramos na crítica de tudo isso e na ideia de que nós tínhamos que pensar o problema, a questão nacional, no contexto do desenvolvimento do capitalismo mundial e não simplesmente no contexto nacional. E isso, é claro, o marxismo nos mostrava claramente, que temos que pensar em economia mundial. A nossa visão do marxismo não se restringia a O Capital, mas era ele que dava as [coordenadas] e depois, claro, as obras do imperialismo do Lênin, as obras mais fundamentais, a Rosa Luxemburgo, o Trotski também, Kautsky.
Todo o debate do fim do século XIX e começo do século XX, debate com Bernstein, nós conhecemos bastante bem, porque a POLOP tinha no grupo que a organizou a figura do Eurico, Eric Mendes. O Eric era alemão e filho de comunistas que foi educado na escola do Partido Comunista da União Soviética. Teve seu irmão assassinado pelos nazistas e eles tiveram que fugir da Alemanha, ai pelos anos 30 e poucos. Mas o grupo ao qual ele estava ligado foi dirigente do Partido Comunista alemão ai por 1921, 22, mas depois romperam. Era um grupo muito importante. Ai por 23, 24, eles saíram do partido e estavam muito ligados ao Riazanov, que foi dirigente da Internacional Comunista neste período. Então eles saem numa postura crítica, eles criaram uma organização chamada Política Operária lá na Alemanha e depois nós fomos saber que a ideia de Política Operária vinha dessa organização, que o Eric botou para nós. Mas a vantagem é a seguinte: o Eric tinha uma cultura de ciência política do marxismo que você não tinha nem de longe, porque ele conhecia quase todas as correntes do marxismo. Ele nos deu seminários de cultura crítica e eu comecei com a Vânia [Banbirra] um estudo sistemático do pensamento político marxista e econômico também. Então, nós tínhamos uma visão muito ampla da construção da teoria do imperialismo, porque aqui, por exemplo, a teoria do imperialismo era o Lênin, mas você não conhecia o Bukharin, que era um discípulo do Lênin, mas que não diverge muito com o Lênin na questão do imperialismo, apesar de o Lênin ter tido certas discordâncias importantes com ele. Mas também não se conhecia, digamos, o papel da teoria do Kautsky do super-imperialismo e do debate que o Lênin faz com ele, etc. Nós entramos em tudo isso. A Rosa Luxemburgo [por exemplo] não era a lida [por todos]. O Ruy Mauro traduziu o Bukharin, o livro dele sobre imperialismo e economia mundial. E nós estávamos trabalhando no sentido de tentar traduzir para o Brasil essas obras básicas, mas não chegamos a poder ter uma edição grande disso aí.
Mas, enfim, o nosso enfoque marxista mostrava que você tinha que pensar o problema nacional no contexto internacional. Foi muito importante que nós não chegamos ao marxismo pela via de um marxismo abstrato, teórico, europeizante, não. Nós chegamos ao marxismo pelo problema nacional e aqui, então, entramos no problema do desenvolvimento nacional e ai tomamos o marxismo num sentido muito amplo, não ficando restritos a uma escola somente. Tenho muito orgulho da minha formação marxista, porque era muito ampla. Convivi com muita gente do mundo inteiro e poucos tiveram esse nível de compreensão que nós tivemos aqui. Realmente era uma coisa muito excepcional.
Quando vem o golpe, em 64, ficamos dois anos clandestinos em São Paulo. Na clandestinidade, eu era dirigente nacional da POLOP, que me propôs como secretário executivo do partido, secretário geral, como chamavam na época, apesar de que a figura de mais peso era o Eric. Lá tive a oportunidade também de ter acesso a bibliotecas muito boas. Na minha clandestinidade, a única coisa que eu saia assim, realmente, do esquema puramente clandestino era o trabalho na biblioteca. E uma biblioteca excelente era a da Federação de Indústrias de São Paulo, onde eu fiz um estudo muito aprofundado da economia mundial. Eles tinham um material excelente, obras do mundo inteiro. Então esse conjunto de elementos permitia que nós avançássemos muito na ideia de construção de uma teoria sobre o processo de desenvolvimento. E, quando nós vamos para o Chile, dei muita sorte, porque imediatamente eu fui contratado pelo Centro de Estudos Sócio-Econômicos da Universidade do Chile e formei uma equipe para estudar a dependência. Formavam esta equipe Vânia [Banbirra], Orlando Caputo, que se converteu num grande economista; Sérgio Ramos, que fez um bom trabalho sobre o Chile; Roberto Pizarro, que também é um estudioso importante, de bastante peso no processo chileno, na esquerda chilena, o que é uma coisa meio rara, porque a esquerda chilena é mais a direita do que totalmente de esquerda, mas ele representa uma ala à esquerda dentro do quadro socialista.
Fora deste grupo de estudos econômicos, que eu passei a dirigir num certo momento, atraímos o André Gunder Funk de volta, que foi pra lá, a Martha Hannecker, que estava voltando da sua relação com Althusser, e estava numa atividade muito forte, e ai vem um grupo de pensadores latino-americanos realmente de muito peso, Marco Aurélio Garcia, Emir Sader, todo esse grupo. Estávamos formando um grupo de pessoas mais novas, mas já com obras e trabalhos importantes. Então realmente nós formamos um grupo de pensamento junto com o processo chileno, onde nós aprofundamos a crítica ao desenvolvimentismo, a ideia de que as transformações nacional-democráticas estavam esgotadas, não que elas estivessem totalmente esgotadas, pois havia ainda uma realidade nacional democrata, mas que, para poder resolver esses problemas, nós tínhamos que avançar para o socialismo. Isso foi o fundamento do programa da Unidade Popular. Nós tínhamos, dentro do Partido Socialista, o MIR [Movimiento de Izquierda Revolucionaria], diretamente sob a influência do Ruy [Mauro Marini], totalmente dentro da nossa linha de concepção. Na esquerda do Partido Socialista também tinha uma grande frente que contava comigo e dava muitos cursos para a militância do partido. Inclusive dentro do Partido Comunista também se formou um grupo que participou dos cursos e seminários e acabou cindindo do partido; outros não, continuaram. O Caputo, por exemplo, continuou todo o tempo, só muito recentemente que criou um conflito, mas se manteve com uma linha de pensamento muito crítica. Mas o partido também evoluiu muito, veio um grupo grande de cristãos de esquerda também, gente muito importante e que vai constituir hoje parte do pensamento latino-americano, gente muito forte.
Então, aí se formou uma concepção crítica muito importante dos limites de uma transformação nacional democrática para resolver os problemas da própria revolução nacional democrática, de reforma agrária, do controle estatal dos processos das riquezas naturais fundamentais, controle nacional das riquezas fundamentais, tudo isso nós fomos mostrando. A revolução cubana era também uma referência prática disto tudo, mostrava que a solução desses problemas não era possível dentro do quadro, de um projeto nacional democrático limitado, mas já de um projeto socialista. Aí já tínhamos uma análise bem detalhada, por exemplo, da economia, do comércio mundial, mostrando como a situação de dependência conduzia a uma perda econômica muito forte. O Brizola falava muito nisso, nas perdas nacionais, ele leu alguns artigos do André Gunder Frank em 64, 63, onde ele mostrava estas coisas. Então começamos a analisar isso tudo e tínhamos também uma grande relação com ele, mas o Brizola sempre teve uma percepção clara disso e sempre foi muito crítico. O Brasil sempre foi um país muito estranho, tem um grau de ridicularização de teses de grande importância que realmente mostra a força da nossa burguesia sobre o pensamento da intelectualidade, inclusive de esquerda. Então falar em “perdas internacionais”, imagina... Estávamos numa época que nós da América Latina pagávamos quinhentos bilhões de dólares que nós transferíamos em pagamento de dívida internacional e as pessoas rindo ao falarmos em perda internacional, acho que é uma outra realidade.
Então tiveram alguns companheiros que assumiram essa questão do socialismo sob uma perspectiva sectária, uma luta interna entre grupos que defendiam o socialismo, outros que defendiam a nacional democracia, outros a luta armada a partir do campo, outros a partir da cidade, as vinte e três organizações que nós tínhamos se dividiam em todas estas coisas. Temos a necessidade de analisar isto dialeticamente, não podemos abandonar as lutas nacional democráticas também. Este foi um problema que nós tivemos com o PT, não existia o imperialismo para eles, inclusive eles falavam mesmo isso: “As empresas nacionais são piores para o trabalhador do que as empresas multinacionais, pagam menos, são contra os sindicatos e tal. Então, por que nós vamos ser contra as multinacionais? O negócio é a luta de classes, não existe a questão nacional.”. É um problema que nós enfrentamos na nossa luta, que é um problema teórico também muito sério. Mostrar a relação entre uma economia mundial estruturante e as economias nacionais, que são parte constitutiva dessa economia mundial. Então você não pode anular uma a outra, você tem que ser capaz de dialeticamente entender as duas. E não se trata simplesmente de economias nacionais que entram uma em contato com a outra, mas que estão dentro de um sistema econômico mundial. Daí o desenvolvimento da ideia de sistema mundial. Nisso a CEPAL tinha avançado, porque ela reconhecia e mostrava a existência de países e economias numa posição subalterna dentro da economia mundial, periférica, como o [Raúl] Prebisch, assumiu claramente este termo. Em sua obra final, sobre o capitalismo periférico ele já reconhece isso, assegura muita coisa da teoria da dependência e desta ideia de sistema mundial, que ele já começa a desenvolver mais.
E esta problemática vai ser a fonte de criação da corrente sobre o sistema mundial, que tem uma base forte, sobretudo nos Estados Unidos, com o Immanuel Wallerstein e seu grupo e Giovanni Arrighi, que realmente vai formar uma escola de pensamento forte e da qual nós participamos. O Immanuel reconhece no trabalho dele próprio, que eu até cito, claramente que as duas influencias principais que teve foram André Gunder Frank e eu. Immanuel é mais velho que eu, não é? [Risos]. Mas ele reconhece isso, o que é uma coisa pouco comum, eu que sofri influência dele, eu é que faço esse tipo de reconhecimento. Não é só o André, tem todo um enfoque que nós estávamos desenvolvendo e que traz junto, na África, o Samir Amin, com o grupo dele, porque ele tem uma projeção muito grande. Mas tem gente, por exemplo, Giovanni Arrighi, ele vai para a África, antes de ir para os Estados Unidos, e vem também estudar a questão latino-americana e a asiática, sobretudo, que foi seu grande interesse nos últimos anos de vida. Tínhamos gente, por exemplo, na Hungria, tinha o Tamás Szmrecsanyi, que partiu muito da experiência africana, muito influenciado pela visão da CEPAL e pelo Samir, que é mais gente que vem incorporar essa formação e esse pensamento voltado para a ideia de um sistema mundial.
O Samir faz aquela obra dele muito importante, no começo da década de 70, 80, da acumulação capitalista mundial, quando nós estávamos trabalhando também na mesma linha. Eu me lembro, por exemplo, de outro que teve uma contribuição muito importante, que foi o Mandel, e que também estava trabalhando um pouco dentro desta linha, com os seus problemas políticos complicados, por causa da sua experiência, do seu grupo de trotskistas, de dirigentes trotskistas, que era um problema de sectarismo um pouco complicado. Mas eu me lembro, por exemplo, em 70, nós tivemos um encontro na Holanda com gente da Europa toda, dos Estados Unidos e de países do Terceiro mundo também, em torno de um grande debate sobre a crise do capitalismo em que levei para o Mandel um trabalho do André Gunder Frank e um trabalho meu, exatamente sobre os ciclos longos de Kondratiev e uma visão deste ciclo desde a periferia, mostrando um pouco dois fenômenos importantes: primeiro que os ciclos nossos eram muito dependentes do movimento cíclico mundial, porque nós não tínhamos acumulação interna integrada. Nossa acumulação estava voltada para o mercado mundial, fundamentalmente. Mas, em segundo lugar, nos países que já tinham alcançado um certo desenvolvimento industrial, como era o caso do Brasil, entre outros, o começo de uma crise, um comportamento cíclico interno, um ciclo interno já industrial, combinado com este ciclo internacional.
Então, veio o Mandel, que estava começando realmente a pensar o mundo mais profundamente com o marxismo. Havia uma renovação do marxismo e a teoria da dependência estava muito na articulação deste processo com o mundo periférico. Porque diria um intelectual brasileiro típico, talvez gaúcho: “que importância tem o mundo periférico?”, iria dizer “Essa gente que não tem nada para dizer...”, mas a verdade era que todo o processo do pós-guerra passou a ser comandado pelas lutas da periferia e o movimento anticolonização, que foi se transformando também num movimento socializante, porque para sair da condição colonial você precisava avançar. E esses elementos, todos eles se incorporando na luta política, transformaram a problemática do terceiro mundo, o desenvolvimento, uma revisão do pensamento europeu, desde uma perspectiva crítica, chegando a uma crítica muito forte do eurocentrismo, que hoje nós já temos muito desenvolvida no mundo inteiro. E a crítica ao eurocentrismo hoje está indo para o ponto que nos começamos a divisar já naquela época: não se trata simplesmente de fazer uma crítica a alguns aspectos da visão européia, não...mas sim ao que representa o pensamento europeu como formato para justificar e dirigir o processo imperialista. Já não se trata simplesmente de uma divergência secundária, a crítica ao eurocentrismo é condição realmente para a passagem a um estágio civilizatório superior, pós-capitalista. Hoje, nós temos muita clareza nisso. E esse aparecimento da ideia dos países emergentes, chamados de BRICS, isso faz parte de um certo reconhecimento crescente de que a visão do mundo não pode ser desde a Europa somente ou desde os Estados Unidos, não, ela tem que ser pensada sob uma dimensão muito mais ampla. Foi no início da década de 70 que nós começamos a armar livros e trabalhos com uma perspectiva mais forte. Alguns trabalhos foram depois reunidos no meu livro Imperialismo y Dependência, que não tem edição brasileira. O André Gunder Frank está num momento muito importante numa crítica da acumulação mundial, o que vai levar a livros muito importantes dele sobre a crise, na metade da década de 70, até meados da década de 80, quando ele começa a se voltar mais para o problema da reestruturação da economia mundial em torno da China, com o livro que ele chamou de ReOrient, onde ele mostra que o oriente é que foi o centro da economia mundial até os séculos XVII, XVIII , que a hegemonia capitalista imperialista vai até a Segunda Guerra Mundial e, a partir de lá para cá, começa a se desestruturar a hegemonia americana, pouco a pouco, até abrir caminho para a volta de uma hegemonia asiática, em torno da China.
(CL&C): Eu vou aproveitar que você já citou a China e os BRICS e introduzir uma questão que nos vai preparar para um bloco de perguntas sobre a crise capitalista. Então, eu queria agora que você comentasse um outro trabalho, um outro estudo seu, e do Aluisio Bevilaqua, que tem uma importância muito grande sobre as nossas teses sobre a revolução, Reacender a Chama, tese sobre a revolução brasileira. O Aluisio retoma um estudo seu sobre a revolução cientifico-técnica e como isso é importante no desenvolvimento de uma capacidade produtiva social maior e no ritmo de recomposição do aparelho produtivo, não só com novas tecnologias, mas novos métodos flexíveis de extração da mais-valia, de exploração do trabalho. Antes de entrarmos na crise capitalista, como foi esta última revolução cientifico-técnica, que você e o Aluisio têm estudado?
(Theotônio) - Trabalhamos muito sobre isso já, exatamente depois do Imperialismo y Dependência [1978], que já tem esta articulação, essa visão de conjunto, ficou bastante claro que é necessário repensar o sistema capitalista a partir da ideia das forças produtivas como elemento chave da interpretação do movimento global. Então eu me voltei para o estudo da revolução científico-técnica, até porque as forças produtivas deram um salto muito grande na década de 40 do século passado. Deram um salto muito grande, que é exatamente esta revolução em que a ciência passou a assumir um papel hegemônico dentro do processo de produção. A hegemonia americana do pós-guerra está muito apoiada nessa concentração. Os Estados Unidos deslocam grande parte dos cientistas e conseguem concentrar, começam pela bomba atômica, depois a computação, que foi em Harvard, vem todo esse sistema eletrônico, petroquímica, a aviação a jato, que rompe o limite do som. Depois, em 1958, os russos também vão dar esse salto espetacular. O socialismo, de alguma forma, dava demonstrações de competir na ponta do sistema.
Os americanos investem profundamente neste campo espacial para tentar tomar a hegemonia russa, coisa que eles nunca tomaram completamente; é verdade que eles chegaram à lua primeiro, mas os russos nunca se pretenderam chegar à lua. O que os russos queriam era a estação orbital e eles criaram a Mir e a mantiveram até a década de 80. Os Estados Unidos começaram a usar a estação em colaboração com os soviéticos quando estes se abriram para uma cooperação. É interessante mostrar que uma sociedade desenvolvida a partir da ciência, não só do corte empírico, tecnológico puro, exigia um investimento em educação, em cultura e recursos humanos muito alto, o que implicava gastos em pesquisa e desenvolvimento. Isso representava um desafio, para o capitalismo, muito grande, porque essas atividades não eram rentáveis para uma empresa, uma vez que elas envolvem um grau de risco muito alto, sobretudo a atividade de pesquisa. Então nós vamos vendo como o Estado se converte no financiador de toda essa atividade.
O Estado começa a aumentar enormemente sua intervenção na economia no pós-guerra nas atividades produtivas tradicionais, mas também ele vai aumentando seus investimentos nessa revolução científico-técnica, isso obriga o capitalismo de Estado avançar enormemente, o que já confirmava a visão de Marx e Engels do capitalismo caminhar para o capitalismo de Estado, visão que foi retomada nos estudos sobre o imperialismo de Lênin, da Rosa, Bukharin, os russos que trabalhavam sobre essa temática até os anos 10 e os que continuaram nos anos 30, esse grupo foi mantendo e trabalhando essa ideia. A revolução científico-técnica tem um papel muito fundamental ao empurrar o Estado para uma participação cada vez maior, de forma que o capitalismo pudesse sobreviver. O capital passa a ter uma necessidade muito grande de controlar este processo de investimento estatal para que o Estado possa cumprir um processo em que ele precisa ser coordenador e planificador. Sem planejamento não há investimento científico-técnico. Tem um papel subsidiador de pagar, assumir as despesas que o capital privado não pode assumir, porque o risco é muito grande e isso rebaixaria enormemente a taxa de lucros. É o Estado que garante, com este tipo de intervenção, uma alta taxa de lucros para esses setores de pesquisa de ponta e renovação. Vamos tomar como exemplo um setor típico, a aviação. A aviação só pôde evoluir porque o Estado – o Estado americano, em particular – contrata as pesquisas de ponta num plano militar depois que você já tem um protótipo, pronto já chegou o Estado te compra a produção, pois são armamentos militares. Então, o Estado te garante quase toda a operação baseado no subsidio que está te dando e depois no mercado que ele representa, portanto, você tem uma dinâmica que é extremamente inovadora nesse sentido, que vai criando um tipo de organização econômica e social nova.
O capitalismo vai se renovando numa dinâmica em que ele tem que desenvolver uma grande capacidade de dirigir um processo sócio-econômico global. Ele tem que ser capaz e o Estado é o órgão para isso. Ele tem que conceber um Estado onde ele possa “hegemonizá-lo” e fazer com que esse apoio estatal seja parte do processo de acumulação capitalista. Essa é a grande temática dos anos 60, até que vem o movimento neoliberal com a pretensão de deter esse capitalismo de Estado, mas que, na prática, não detém, pelo contrário, eles conseguem retirar o Estado no aspecto social, às vezes até no aspecto tecnológico um pouco, mas buscando, sobretudo, usar o Estado como base de transferência de recursos para o setor financeiro, porque é o setor para o qual a acumulação capitalista se volta na década de 70, uma década depressiva. Busca taxas de lucros altíssimas e é através do Estado que se consegue montar esse setor financeiro, das dívidas públicas etc., que serão o grande instrumento de criação desse setor colossal e que alguns falam que se desenvolveu porque não houve regulamentação estatal. Não foi isso! Pelo contrário, a desregulamentação do Estado ou a não-regulamentação é uma forma de intervenção estatal para permitir a transferência maciça de recursos para esse setor financeiro.
Então, nós temos toda uma temática que nos obriga a repensar, por exemplo, em como nos articularmos em nossos países, em como foi feita a articulação com a economia mundial. Nós descobrimos na análise do processo que existia um fator que permitia a criação de grandes excedentes financeiros, que era o superávit comercial. O que se passava com nossos países? Para se ter superávit comercial nós precisamos exportar mais do que compramos, mas, na década de 80, nós gastamos todo esse superávit no pagamento de juros de uma dívida que se criou nos anos 70 de uma maneira muito artificial, imposta e complementada pelo capital financeiro nacional, que usou o Estado para a criação de uma dívida mundial em que se beneficiou de uma parte muito grande, as comissões. Isso criou uma burguesia financeira tipicamente compradora, intermediária dos empréstimos, e os pagamentos desses empréstimos, e que vai ficando com as comissões até chegarmos à década de 90, quando o processo de privatização foi a forma de repassar recursos para pagar essa dívida, em parte internacional, bem como transferi-los para o setor financeiro e o setor privado em geral, de forma que, nas décadas de 80 e 90, não tivemos nenhum investimento realmente produtivo.
Todo esse movimento de capital gigantesco foi a apropriação direta de excedentes que já existiam anteriormente e que foram repassados, com esse mecanismo, para o capital internacional. A participação dos salários na renda nacional, 43%, 47% no final da década de 70, baixa, em alguns países, como o Chile, para 23%. E a sobra, para onde vai? Uma parte vai para pagar o capital financeiro internacional e nacional, que são garantidos nesse aumento da taxa de exploração por todo um sistema de terror montado sob as ditaduras. Na verdade, o Estado foi um fator fundamental no processo de acumulação em todo esse período. E formando essa camada de capitalistas não-produtivos, que não sabem nada do seu país, que não têm interesse por isso, tem [apenas] interesse em usar os instrumentos do Estado para entrar nesse cassino mundial e pegar a parte deles. Essa burguesia financeira é um grupo capaz de entregar qualquer coisa, não tem nenhum sentimento de vínculo com a nação, exceto que tem que ter alguma influência no Estado para poder ser financiada. Por isso, eles vão para o pensamento único que pretende elevar o eurocentrismo ao lugar mais alto: os Europeus são “a civilização”, “o pensamento” e não tem nada mais, não tem nenhuma especificidade, não tem nenhum valor próprio, não existem povos, antes de mais nada, o que existe é o indivíduo, acumulador, consumidor não tem nação, não tem nada.
(C&LC): Vamos entrar agora um pouco na crise, que é uma questão importante. Você falou do Estado, da especulação financeira, poderia caracterizar essa crise agora? Você já chegou a escrever em alguns artigos que ela tem diferenças para a crise de 29. Quais são as características dessa, quais são os aspectos conjunturais, os estruturais?
Em primeiro lugar, nós temos que fazer uma distinção muito clara entre os aspectos estruturais e os aspectos conjunturais. No aspecto estrutural, começa a crise do capitalismo, como modo de produção, na Primeira Guerra Mundial, quando começa a crise do capitalismo como modelo final. Nós tivemos, agora, com o pensamento único, a mesma tentativa. Mas, em 1914 nós já temos a Revolução Russa produzindo a crítica material e ideológica do capitalismo. Um processo como a Revolução Mexicana indica que no Terceiro Mundo o processo da revolução é muito mais... Claro, pode ficar no aspecto nacional-democrático, está permanentemente numa dialética como o socialismo. E para se afirmar como um processo revolucionário maior, a Revolução Mexicana vai se apoiar no movimento operário, no movimento camponês, que são as únicas possibilidades de manter a revolução democrática avançando. Assim, já estão colocados os limites do capitalismo como sistema, ele está mais numa posição defensiva que ofensiva. Alguns autores, tentando ridicularizar, colocam muito que, no pós-guerra, o capitalismo resolveu os problemas. Não é verdade! Mas, mesmo que o pós-guerra tivesse resolvido os problemas da organização capitalista, só o período de 14 a 45, das duas guerras mundiais, com a crise de 29 no meio, é suficiente para mostrar que este sistema não tem condições de se apresentar como modelo final de organização social. Inclusive para tentar sobreviver, ele recorre ao fascismo, ao nazismo, que foi realmente o instrumento de recuperação de grande parte das economias capitalistas. Se você pega o ano de 1940, a Europa está toda ocupada pelos alemães, pelos nazistas, em acordo com os italianos. Os alemães ocuparam a Europa toda sem dar um tiro, no fundo, a Europa se entregou. Só ficou de fora, a Inglaterra e algumas resistências que começaram em 1940, que foi a resistência iugoslava, que deu na revolução iugoslava, basicamente, porque ninguém mais resistiu e a resistência soviética à ocupação nazista, que vai destruindo as condições de sobrevivência do exército alemão. Eles foram entrando e só encontraram tudo destruído, auto-destruído, até começar a grande contra-ofensiva. Na verdade, quem derrotou os nazistas foi a União Soviética. Você vê que os americanos ficaram de abrir uma segunda frente no Ocidente e só abriram quando os soviéticos avançaram. Apenas quando os soviéticos já estavam chegando na Alemanha, é que os norte-americanos desembarcam e ocuparam a França e marcharam loucamente para chegar em Berlim antes deles. Os nazistas também já estavam recuando, por necessidade de defesa e assim não houve grandes choques.
São trinta anos em que o capitalismo está numa postura defensiva e o momento de maior auge é exatamente o fascismo, nazi-fascismo. Também os Estados Unidos desenvolvem nos anos 40 um poder militar colossal, que vai permitir que ele saia da guerra como a grande potência mundial. Você vê como o liberalismo, as doutrinas econômicas e políticas, sobretudo do capitalismo, estavam sendo questionadas profundamente. Você abandona o liberalismo tradicional em nome de uma nova atitude diante do Estado e o keynesianismo vem como expressão dos caminhos que se adotam nesse período. Muitos apresentam o keynesianismo como o que resolveu o problema. O keynesianismo refletiu em grande parte os problemas que estavam ocorrendo nesse período. O capitalismo está em plena defensiva. É claro que depois de 1945, houve um período de recuperação. Segundo Kondratiev, depois da recessão você tem uma nova fase de auge. O capitalismo teve um crescimento muito grande, mas primeiro ele teve que gerar um sistema social que não estava em seus planos por dois fatores importantes, a luta do movimento operário nos países capitalistas e a existência da União Soviética como alternativa. Então, o capitalismo começa a se adaptar à ação dessas duas grandes forças. No Terceiro Mundo, a tentativa de impedir uma radicalização socialista fracassa. O primeiro grande fracasso é a Coréia quando tentam impedir o socialismo na Coréia do Norte. Termina ali onde começou, no Paralelo 38. Precisam fazer uma reforma agrária forte na Coréia do Sul para dispor de algum grau de competição, para ter um modelo. Depois, veio o Vietnã, outro fracasso colossal, um fracasso da colonização européia, mas fracasso norte-americano também, na ponta do sistema. Fracassam na Coréia e no Vietnã, onde os norte-americanos substituíam os franceses. Depois de chegar a enviar quinhentos mil homens, em 73/74 são expulsos.
Sem falar na China. Eles [EUA] passaram o tempo todo tentando deter o processo chinês. Quando conseguiram chegar próximos dos chineses foi aproveitando a luta entre a China e a União Soviética. Entretanto, essa aproximação vai permitir a China dar um salto enorme em termos de poder econômico. Tem a ver com o fato de que a China fez uma reforma agrária e teve avanços importantes na planificação da economia e na intervenção estatal para poder usar tudo isso como instrumento de expansão rumo à economia mundial. Claro que ela teve que se abrir, mas ela se abriu com um poder de iniciativa muito superior ao que o capitalismo pensava que ela poderia. Isso para chegar à situação atual em que o crescimento dela já é um risco para a hegemonia americana claramente, e não só americana, européia também, o segundo lugar eles [os europeus] já perderam para a China. E o problema ali não é só a China, tem a Coréia, Taiwan, que faz parte da China, Singapura. Quando você entra na Coréia, chega na União Soviética [atual Rússia], em toda uma área que está em plena industrialização. Aproximando-se, por outro lado, da Índia, do Paquistão, você tem uma economia extremamente pujante, na qual o capitalismo representa um papel muito importante, mas sendo obrigado a conviver com propostas socialistas e numa dinâmica de forte capitalismo de Estado. O capitalismo para sobreviver tem que abrir caminho para o capitalismo de Estado. Mesmo no período de auge capitalista do pós-guerra, você tem derrotas permanentes do sistema. Ele está sempre na defensiva e, para poder ficar na ofensiva, tem que apelar para o Estado, para o processo de socialização. É preciso elementos socializantes para que ele possa controlar o capital privado. Então, nessa dinâmica, já está claro que, mesmo o período de auge foi um período recessivo, um período de perda, defensivo. Quando o capitalismo entra em crise outra vez, em fase decrescente, os elementos recessivos são superiores aos elementos de crescimento da década de 70 até 94.
O capitalismo tem alguns elementos reestruturadores que o fortalecem, como o neoliberalismo. A tentativa dos Estados Unidos de articular a Trilateral, com Europa e Japão, para comandar tudo isso, é uma resposta ao fato de não poder conduzir [o processo] sozinho. Então você pode dizer que o capitalismo está triunfando no momento em que a União Soviética entra nessa crise tão grave. A quantidade de acumulação de contradições que o sistema vai provocando gera situações em que este não pode controlar. Chega a essa coisa do regime do Bush onde eles tentam dar soluções de força que não conseguem impor. Veja bem o caso do Iraque, uma derrota colossal, passaram todo tempo tentando virar a situação e não conseguiram. Na Índia, eles tentam uma separação definitiva entre a China, a União Soviética [Rússia], etc. Conseguem alguma coisa nesse sentido, mas a Índia continua numa dinâmica com muita autonomia. E, com esse potencial do mundo asiático crescendo cada vez mais, cada vez mais esse mundo começa a se asiatizar, porque antes Coréia e Japão estavam num tipo de desenvolvimento voltado para o Ocidente. O Japão na década de 90 salva sua economia em articulação com a economia asiática, perde o mercado americano novamente. Na década de 90, a China estava muito ligada à economia americana e dependia fundamentalmente desse mercado, já na década de 2000, começa a reestruturar sua economia com vistas ao mercado interno e começa também a estruturar sua economia em torno do mundo asiático. O Japão rearticula sua economia em função da economia chinesa. Hoje, o Japão exporta mais para a China do que para os EUA, a maioria das exportações do Japão vão para a China. Na década de 90, se alguém dissesse que isso iria acontecer, seria ridicularizado... Eles pensavam que iam inundar a China com tecnologia alta e ajudar os chineses a exportar.
Aqui na América Latina começamos a entrar numa relação com o mundo chinês com a sua capacidade crescente de demanda. O segundo lugar das exportações brasileiras é a China, não é a Argentina. Depois dos EUA, é a China o principal [parceiro comercial]. Por mais que o trilateralismo da década de 80 dissesse que o mundo seria trilateral e acabou, quem desafiaria os EUA? O Japão. Ninguém falava da China. O André Gunder Frank escreveu sua obra sobre a China na década de 80. Toda a dinâmica está sendo conduzida para o mundo asiático, não para o mundo japonês, mas para onde a China é o elemento organizador. O projeto Trilateral foi um grande fracasso. Agora eles estão pegando as sobras.
Na União Soviética, eles [EUA] pensaram que tiveram uma grande vitória, tiveram, uma vitória em termos, porque lá eles destruíram o inimigo, mas perderam um inimigo que ajudavam os Estados Unidos a manter o seu domínio no mundo capitalista, complicou muito. A Alemanha Oriental foi jogada para a Alemanha Ocidental e isso é um problema que até hoje a Alemanha Ocidental não conseguiu resolver. O capitalismo está funcionando numa perspectiva de crise permanente, na qual o centro do sistema está sendo questionado e as novas potências emergentes ainda aparecem sob a forma de uma luta intercapitalista, mas se nós considerarmos outros fatores nesse processo você vai ver que não é só uma luta intercapitalista. No caso das forças produtivas, há uma reestruturação da divisão internacional do trabalho que o grande capital pensou na década de 70. Na visão deles, transfeririam a luta de classes interna nos EUA para uma luta mundial, tomando mão-de-obra barata no resto do mundo para vender para o mercado americano e, com isso, conseguiriam um rebaixar a capacidade de luta dos trabalhadores no centro: EUA e Europa. Lembro um amigo que, em 69, num dos primeiros livros sobre globalização, realizou uma pesquisa com os dirigentes de empresas. Então, o diretor da Ford falou para ele: “Você está vendo esses operários aí fora, criando problemas, tomando fábricas, nós vamos liquidar com isso, nós vamos colocar empresas no mundo inteiro, vamos transferi-las para outros países e eles vão se submeter, vamos acabar com isso”. Foi uma estratégia que conseguiu resultados não há dúvidas, sobretudo no centro – Estados Unidos, Europa e Japão – a dinâmica do movimento operário caiu muito, porque eles tiveram que enfrentar essa crise brutal de desemprego e o que eles chamam de exportação de emprego.
Hoje o movimento operário norte-americano fala que se criou o operariado global, então defendem que deve ser garantido nas zonas periféricas que o movimento operário se fortaleça para elevar o nível de vida, salários etc. de forma que eles [operários da zona periférica] não sejam competidores e os obriguem a rebaixar seus salários [dos operários norte-americanos]. Então eles estão falando de uma equalização social, eles são a principal força que levou o FMI, o Banco Mundial a incorporar nos empréstimos financeiros as chamadas exigências sociais. Primeiro, conseguiram colocar a questão do trabalho escravo, conseguiram colocar o problema da organização, da liberdade sindical como exigência para obter empréstimos, eles querem sobretudo a elevação do nível dos salários porque o salário baixo puxa o salário americano para baixo também. Esse campo ainda não foi explorado completamente, porque a burguesia do Terceiro Mundo tem colocado o movimento operário numa defensiva, dizendo que isso [lutar por maiores salários] é uma política da direita americana para que não possamos competir com os EUA e a Europa. Alegam que se pagarem um salário mais alto não vão ser capazes de competir e desenvolvem toda essa ideia de que a nossa competição em escala mundial tem como pressuposto o salário baixo. O Ruy Mauro Marini tenta mostrar isso, que a superexploração do trabalho é a forma que a burguesia tem de manter a mais-valia local e transferir para o exterior a parte que significa sua submissão. Por que nós temos que nos submeter a um modelo? Por exemplo, o setor mineiro tem uma parte ínfima de trabalho, o que nós entregamos gratuitamente mesmo é a natureza para o capital internacional; no setor agrícola, que era um setor importante de utilização de mão-de-obra, cada vez mais o agronegócio favorece um uso de mão-de-obra decrescente, campos e campos enormes com pouca mão-de-obra e altíssima produtividade. Portanto, não é verdade que para que haja competitividade mundial tenha que se ter mão-de-obra barata. Desde quatro anos atrás, há uma revisão das condições dos trabalhadores chineses, talvez muito menos do que se gostaria, mas eles estão com a ideia de aumentar as condições de vida dos trabalhadores e não perderam mercado por causa disso.
(C&LC) – E há os salários indiretos.
(Theotônio) - Os salários indiretos são mais importantes. Mas eles [os governantes chineses] estão tirando o salário indireto porque estão financiando o capitalista privado com o salário direto. Os capitalistas vão ter que pagar a previdência e quem tem um salário mais alto também. Criaram um sistema de previdência social bastante importante para este setor privado, há cerca de dois anos, com o cálculo privado ele paga e vai receber em função da contribuição que ele fez.
(C & LC): Eu vou acrescentar nesse ponto uma questão sobre um componente da crise, que foi alvo de um estudo do nº anterior de Ciência & Luta de Classes, que é o componente ambiental. Este artigo do Aluisio Bevilaqua diz que o modo de produção capitalista ultrapassou o limite das forças produtivas, levando ao esgotamento de fontes de matéria-prima e ameaçando a própria vida no planeta. Comente o componente ambiental da crise capitalista.
(Theotônio) - A concepção privada de lucro procura extrair o máximo da natureza com o mínimo de custo. Como sistema, o capitalismo nunca deu nenhuma atenção ao esgotamento dos recursos naturais, nem mesmo em seus cálculos econômicos, e isso vai se agravando neste período de globalização, a ponto de o modelo não apresentar uma perspectiva clara de desenvolvimento. A preocupação com a conservação da natureza, no entanto, não é suficiente, é necessário lidar com a natureza de forma que ela possa tender melhor às necessidades humanas. O cálculo econômico da empresa capitalista simplesmente não incorpora isso. O sistema capitalista também no seu conjunto não incorpora. Agora há esse grande movimento para incorporar isso, que é o grande movimento ecológico que vai se desenvolver, sobretudo a partir década de 70 para cá, aumentando a contradição entre o sistema e o planeta. A grande ameaça já tinha começado na Segunda Guerra Mundial, com a energia atômica e depois nuclear, porque ela se transformava num elemento de hegemonia militar, de domínio do mundo, chegando-se um ponto, na década de 60, com a resposta soviética, em que se anunciava já a destruição do planeta.
[A crise] é ecológica não só no sentido de relação com a natureza, de destruição do que existe pelo uso dela, mas pela relação com a natureza e sua própria capacidade destrutiva, transformada em arma e, portanto, em possibilidade de destruição mundial. Na década de 60, isso já se tornava muito claro e, na década seguinte, vai se expandir para toda a problemática ambiental. Eu acho que o socialismo foi muito lento na capacidade de dar uma resposta a isso. A influência positivista no pensamento marxista foi muito grande no final do século XIX e o positivismo não via limite para o processo de expansão produtiva e industrial. A resposta dos soviéticos, muito dentro dessa linha, foi muito pouco consequente. Sem levar em conta essa relação dialética com a natureza, sempre achando que se pode avançar indefinidamente em seu controle. Agora esse problema se converte numa das questões mais chaves do movimento socialista; Meszaros tem colocado isso como questão central. O capitalismo não consegue resolver o problema da sobrevivência planetária, só uma forma superior, mais civilizatória vai permitir isso. Daí o processo de luta pelo socialismo ir adquirindo o caráter de luta civilizatória. O socialismo não é somente um modo de produção, mas uma civilização nova, na qual se tem que integrar profundamente a questão ambiental.
Nós temos pela frente um desafio muito grande, porque o enfoque do problema ambiental tem sido feito sob uma perspectiva conservadora, de conservar o que existe e não de saber como ser mais bem aproveitado, mais bem utilizado [o meio ambiente] ou a outra forma desenvolvida pelo capital de criar uma indústria e uma economia ambiental. Então “eu não posso parar com a fábrica, mas ela destrói”; “Bom, mas têm filtros, tem uma economia para te atender”. Então você vai aumentar o custo de produção. E há todo um setor montado para isso. Eu vou produzir menos autos, mas em compensação eu entro com o auto elétrico, ou vou entrar com uma economia substitutiva dentro do próprio sistema. A questão que está predominando não é introduzir limites na indústria que existe, mas chegar a outro nível de produção. Muitos companheiros pensam em voltar para outro tipo de economia de pequena empresa, até o momento, o que mais avançou nisso foi o Canadá. Eles têm cerca de 15% da economia de tipo solidária. É bastante, é possível que cheguem até mesmo a 20% ou 30% , não mais do que isso. Se o resto vai ser capitalismo de Estado, você vai ter que arrumar uma forma de dominar o capitalismo de Estado do ponto de vista socialista e não do ponto de vista do setor privado. Isso vai ser uma luta que se está travando crescentemente no mundo inteiro, no mundo subdesenvolvido também. A China, hoje, está preocupadíssima com a questão ambiental, que durante um período eles desprezaram enormemente, agora estão dando atenção a isso. Estão discutindo muito com os africanos, porque estão fornecendo matérias-primas para eles. É uma tentativa de avançar tecnologicamente para superar esse consumismo que armou a economia capitalista nesses anos de alta produtividade, depois do avanço produtivo do pós-guerra. Já há um grupo de companheiros que estão avançando muito nisso, o livro do Carlos Walter, A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização, é um avanço nisso. Enrique Leff, que é muito ligado a ele, tem trabalhado muito sobre a filosofia ambiental e nós temos, nos EUA, a ideia de uma ecologia marxista, com o James O’Connor.
(C&LC): Faremos agora um bloco de três perguntas. Primeira, é possível superar a crise dentro dos marcos do capitalismo? Qual é a relação do Brasil com a crise? E, por último, gostaríamos que você comentasse a saída de Nossa América à esquerda, pelo socialismo.
Até agora eu falei de uma crise estrutural, basicamente. Essa crise que estamos vivendo é conjuntural, nesse processo estrutural. Cada crise conjuntural obriga o sistema a aumentar sua dependência com relação a soluções que são cada vez mais críticas para a sobrevivência da humanidade, porque o grande problema do capitalismo é que ele está cada vez mais ameaçando a sobrevivência da humanidade. A crise atual se apresenta, fundamentalmente, como uma crise que vem do setor financeiro, uma “sobredimensão” enorme desse setor. Como falei anteriormente, esse aumento do setor financeiro está associado ao aumento do Estado, da intervenção estatal, das grandes dívidas públicas que se armaram no mundo inteiro. Em torno dessas dívidas públicas, se formou um setor financeiro colossal. Quem vende a dívida pública, quem usa a dívida pública, é o setor financeiro. O Estado emite títulos, mas quem negocia esses títulos é o setor privado. E foi isso que permitiu, com a dívida pública se agigantando enormemente, como se deu na década de 80, fornecer a este setor enorme instrumento para que se desenvolvesse. Muitos companheiros têm insistido numa ideia de um setor financeiro fictício. O setor financeiro está baseado nesses grandes desequilíbrios econômicos criados pela economia capitalista, pela sua própria lógica. Não é só o déficit fiscal, é também o déficit comercial, países como os Estados Unidos vivem mais de importar do que exportar. O mundo produz para eles para se manterem num padrão de vida altíssimo. Com o que eles compram do mundo? Com a emissão financeira. Eles não produzem. Há uma solução que o sistema gerou de curto prazo, que foi a seguinte: você emite títulos da dívida e aqueles que conseguem superávit exportando para você pagam em dólar, mas ele usa os dólares para comprar títulos da dívida americana. O dólar fica dentro dos EUA, quem exportou e não recebeu nada de volta agora recebe o dólar, mas o que é o dólar? É título da dívida pública americana. Coisa que o Japão viveu muito dramaticamente, a Alemanha também. Isso muito reforçou muito as suas moedas, ficou muito difícil para eles continuarem a exportar para os Estados Unidos.
A China, que hoje é a grande exportadora para os Estados Unidos, entrou neste vácuo. Eles estão usando o superávit também para comprar títulos da dívida pública, porque isso é uma condição dos EUA para abrir o seu mercado. Como você só pode exportar para os EUA se for considerado uma nação amiga, politicamente você tem que aceitar a ideia de que o superávit terá que ser usado para comprar títulos da dívida pública. O que ocorre é que as dimensões disso estão mudando: uma coisa é você ter cem, duzentos bilhões de dólares de títulos, outra coisa é chegar, como a China está chegando agora, a setecentos, novecentos bilhões de dólares... Quase todos os títulos novos da dívida americana foram comprados pelos chineses. Os EUA passam a depender totalmente dos excedentes financeiros da China. Mas não é muito simples, para eles, dependerem dos chineses. Não é uma solução que você possa cultivar a um longo prazo. Quando esse setor financeiro vai gerando excedente crescente e vai adquirindo essa forma colossal, chega a um ponto em que ele não pode mais continuar emitindo. Por quê? Porque você vai gerando excedente, vai gerando inflação, os preços vão subindo, porque você não produz suficiente para atender a essa massa de recursos que está usando. O que vai acontecer? Esta situação não vai se refletir no preço da comida, porque essa é comprada do exterior com a dinâmica dos países emergentes. É uma boa solução para o sistema americano, porque está comprando a preço barato. A China inclusive está com altíssima tecnologia e competindo, no mercado mundial de alta tecnologia, com preços baixíssimos.
No entanto, há outros setores onde a inflação não pode ser detida, um destes setores é o setor imobiliário. Há um aumento enorme do preço das terras e das construções, o setor financeiro pega esse aumento e começa a emitir títulos financeiros em cima dele. Imagina que você está comprando uma casa agora e eu te dou um empréstimo, depois eu te digo: “eu vendo uma outra casa muito maior pelo mesmo preço que essa”. O comprador replica: “não tenho dinheiro para pagá-la”. “Não importa, você vende essa para mim e vai pagar o resto” [do empréstimo]. Essa casa [a primeira] então vai subir de preço. E eu faço isso, porque posso ficar na expectativa de, mesmo que você não pague, eu recebo a casa [a segunda] por um preço muito superior. Os meus acionistas estão colocando dinheiro na minha empresa por causa disso, pego a casa com um valor muito maior. Como esse preço é inflacionário e está ligado à falta de expansão do mercado produtivo, vai chegar a um ponto em que você não vai mais conseguir manter essa expansão do preço e o sistema produtivo também vai começar a entrar em baixa. Hoje nós estávamos vendo isso na economia americana, como é que cai a produção, como é que caem os empréstimos, como cai o preço? O preço aumenta muito mais que a produção de casas e então começa a cair, mas, quando o preço cai, esse empréstimo que você fez não tem mais fundamento porque, se você vai devolver a casa, a casa dele vai valer muito menos e aí você [o capitalista] não aceita mais a casa de volta e ele [consumidor] fica com uma situação em que não pode pagar e não pode vender, se vender, vai ficar com uma dívida muito maior. Então você tem um momento de depressão que é típico dos ciclos dos sistemas. Só que como o Estado teve que intervir tão fortemente no sistema, entregando recursos e entregando uma liquidez, para fazer essas operações todas que vêm dessa dívida pública, do dinheiro que o Estado vai lançando no mercado, você vai à falência. E quando ocorre, o estouro é muito grande.
Criou-se um novo conceito: empresa grande demais para quebrar. Não pode deixar ela quebrar. Então, o Estado tem que intervir e mantê-la viável, porque ela é inviável. Ela não está quebrando porque é grande demais, está quebrando porque houve especulação, aproveitando uma fase de expansão que não vai continuar indefinidamente. Numa situação normal, essa crise iria muito mais longe, porque a tendência é uma crise gravíssima, com a desvalorização de investimentos. Mas o que acontece é que o Estado está entrando maciçamente para salvar as empresas e, com isso, salvar eventualmente o setor privado. A queda dos preços é muito menor que a queda da construção, por exemplo. Porque o Estado já pôs cinco ou seis trilhões de dólares para salvar essas empresas da decadência. Essa recuperação não vai retomar o crescimento nos países centrais a um nível alto, porque ela esta sendo feita à base dessa intervenção estatal que não deixou quebrar os setores que, teoricamente, para recuperar o equilíbrio, deveriam ter quebrado. E quem sustenta eles? Eles não fazem nada! Eles não emprestam para ninguém... Então, o Estado tem que tirar dinheiro do povo, ou então tem que emitir moeda, que é o que os Estados Unidos estão fazendo, causando inflação. Na verdade, você não vai conseguir manter uma taxa de crescimento alta. Apesar, e esse que eu acho que é o específico da situação atual, estamos no momento de revolução no sentido tecnológico, promovendo ainda uma expansão de inovações muito significativas.
Há setores enormes para serem incorporados ainda na economia mundial. A televisão digital e todo esse campo de alta definição irão substituir tudo o que existir de televisão no mundo, ninguém irá manter as televisões antigas, é uma questão de quatro ou cinco anos. Irão mudar todas as câmeras, imagina ter uma TV de alta definição e uma emissão de baixa definição. Tem-se um campo enorme de confecção, que é um campo em que entrou o laser, hoje você pode usar um desenho de roupa, cortar aquilo e até, em vez de costurar, fechar com laser, com isso você diminui o custo de confecção massivamente. Esse campo de consumo de confecção tem ainda uma margem enorme. Se você considerar as populações pobres do mundo de nível médio, você tem uma massa de demanda possível enorme. O carro vai ser renovado, todos têm que ser renovados, os carros têm que ser menos poluentes, vai ter que se tomar uma posição nesse sentido. Ademais, vai começar a ser um negócio para os capitalistas, porque aí você vai ter que comprar carros novos, com uma nova tecnologia. Enquanto os americanos estavam dominando no mercado de carros, eles não queriam arrumar uma solução para esse problema, mas de qualquer forma os Estados Unidos serão obrigados e há uma pressão do próprio governo para isso, porque o Obama representa um outro grupo, eles vão ter que se modernizar, porque nós vamos entrar em um outro ciclo de demanda, e esses carros vão se tornar carros velhos. Vamos entrar em uma nova produção. Tudo isso são campos novos, que ainda estão se inovando. A utilização de robôs na produção ainda tem um campo enorme para entrar, a utilização do robô como produto final, para ajudar na sua casa. Tem um campo ainda de investimentos com tecnologia existente. A inovação é de como utilizar mais, enquanto a tecnologia já existe, há muitos anos.
Então você tem por aí, pelo menos mais uns cinco ou dez anos de expansão. Quem vai fazer essa expansão no setor produtivo agora, não porque o capital gostaria, talvez ele [capital] gostasse de manter esse país desenvolvido [Estados Unidos], mas os salários estão muito altos e a estrutura mais difícil de comandar... Caso eles consigam dominar os estados dos países emergentes, eles vão poder desenvolver uma parte grande desse comércio novo, dessa função nova, com investimento nesses países. Coisa que, neste momento, estão com certa dificuldade, porque são países que já tem certa base tecnológica, e que, portanto, podem começar a ter uma independência crescente nesse sentido, não irão precisar das empresas internacionais: eles não têm capital [os Estados Unidos], não têm o dinheiro sobrando, pelo contrário, não têm poupança, os Estados Unidos consomem hoje mais do que produzem, não têm poupança, não têm liquidez. Por que vamos precisar do capital internacional? Estou desenvolvendo, eu tenho poupança, tenho liquidez, estou exportando para o comércio mundial, principalmente para China. A segunda importadora do Brasil, hoje, é a China, o Brasil não exportava nada para China há dez anos atrás. As principais exportações do Japão são para a China. A China é uma economia dinâmica que está aumentando sua demanda enormemente.
Então, eu tenho possibilidade de ter um excedente comercial grande e esse excedente comercial foi convertido, nos últimos cinco anos, não só no Brasil, mas em todos os países subdesenvolvidos, em reservas. Alguns, mais inteligentes, converteram suas reservas em fontes de investimento com fundos soberanos, ou seja, faz parte da minha reserva, mas eu permito que sejam usadas para investimento e não colocar em bancos, já que a taxa de juros é mais baixa, não vale a pena, definitivamente. Só mesmo o [Henrique] Meirelles que é capaz de dizer que vale a pena investir em dólar que se desvaloriza e te paga 0% de juros, qualquer cara com um mínimo de visão entende isso. Esse grupo que controla o Banco Central vai ter que cair, são uns incompetentes. Com esse mundinho deles neoliberal eles não são nada, nada! Tem muita gente que irá usar isso, como a Venezuela está fazendo, ou seja, é o dinheiro que tenho de reserva, mas estou usando-as para financiar atividades produtivas, com taxa de juros muito maior, eu não estou perdendo dinheiro. A crise vai me fazer perder dinheiro? Se eu fizer bons investimentos não vou perder dinheiro. O Banco do Sul esta aí para isso, o Banco da Ásia. Os chineses estão pensando que vão conseguir influenciar o FMI, mas não sei. O sistema esta exigindo que parte desses recursos vá para o sistema tradicional financeiro, o FMI mundial. Nós vamos botar dez bilhões no FMI, os chineses estão já com cinquenta bilhões lá, mas para eles [o FMI] cinquenta bilhões não é grande coisa, pois têm dois trilhões de dólares de reserva. Cinquenta milhões em troca de que, de que nível de controle? Como eles vão mudar as cabeças dos burocratas do banco? É uma gente formada toda dentro dessa visão neoliberal.
Enfim, o fato é esse, que o sistema está gerando esse excedente muito mais no Terceiro Mundo do que nos países centrais. Aí é que nós temos liquidez, a possibilidade de usar tecnologia nova sem muito problema, porque não temos investimentos anteriores em tecnologia antiga, podemos incorporá-la com a alta tecnologia. Nós temos mão-de-obra a preços mais baratos, claro que temos problemas no aspecto de formação, sobretudo o Brasil, a África também e aqui na América Latina em geral nós temos esse problema. Na Ásia estão investindo massivamente nisso, então eles têm, em geral, uma massa muito grande de mão-de-obra com uma boa qualificação e com capacidade de trabalhar com essa tecnologia mais avançada sem muito problema, a um preço muito mais baixo.
Os investimentos dos países centrais acabaram e essa luta de pegar investimento dos países centrais vai passar. São eles que estão lutando para pegar a nossa liquidez agora. Convenceram-nos [o Brasil] a colocar dez bilhões de dólares no FMI. Nós temos duzentos e poucos bilhões de dólares de reserva, são 5% delas... Para aumentar a influência. Vai aumentar? Com que grau e com que de direção? Então, como diz o Lula, é muito chique, em vez de pedir dinheiro emprestado ao FMI, botar dinheiro lá.
A fase de aproveitamento desse potencial econômico vai transferir muito para o Terceiro Mundo. Então, vamos ter uma economia americana, que teve importante crescimento de 1994 a 2000, em 2001 teve uma queda, voltou a crescer de 2002 a 2008, 2009 caíram outra vez, retomando o crescimento, mas dessa vez em uma linha bem mais baixa, porque o grau de investimento que fizeram em “não investir” e manter uma coisa que não é produtiva, que não gera nada, vai ter como consequência o que passou com o Japão na década de 90: a bolsa de valores oscilava em -2%, -1%,-3%,+1%,+2%, houve um ano que teve +5%, depois caía outra vez para +2%. Eu creio que os Estados Unidos vão se aproximar da forma de crescimento econômico do tipo da japonesa e vai continuar crescendo, 1,5%, 2%, enquanto a China vai continuar com 10%. Isso vai produzir uma reestruturação da economia mundial muito forte, uma nova correlação de forças de tal forma que, à medida que essa recuperação vai utilizando a base de inovação existente, creio eu que, em sete ou dez anos a mais, vamos chegar à necessidade de termos investimentos realmente muito poderosos para poder continuar o crescimento. Neste momento, com um sistema financeiro deste tipo, tanto os EUA como a Europa e o Japão irão entrar numa crise muito brutal. Quanto a nós do Terceiro Mundo, não tenho ainda a clareza de como iremos enfrentar uma situação dessas e por quanto tempo ela pode ser enfrentada mantendo uma perspectiva capitalista. Acho que é muito limitada a possibilidade de fazer isso e que nós vamos ter que preparar uma decisão para produzir uma alternativa socialista. Claro que não é fazer um socialismo igual para o mundo inteiro ou cometer o erro dos soviéticos de querer transformar todos os países seguindo o modelo soviético, não, nós temos que pensar o socialismo como diferentes formas de transição para uma economia mais solidária e mais voltada para as necessidades humanas, com a solução de problemas tão drásticos, como essa população de miseráveis no mundo, que não tem condições, ou o do meio ambiente, já que em trinta, quarenta anos o petróleo estará acabando, por exemplo.
Então nós temos que ser capazes de propor uma reestruturação da economia mundial, da política, da gestão do mundo, na base de relações de produção novas, superiores, que permitam a reorganização da economia do mundo em função de objetivos e valores superiores, isso é um desafio colossal. Eu tenho muito medo porque muitos companheiros dizem que a crise é agora, que essa é pior que a de 29 e não é, a grande crise vem aí, realmente vamos ter uma crise brutal. A crise agora é violentíssima, mas nós estamos em uma fase de crescimento, imagine então quando essa fase de crescimento chegar ao seu limite, exigir uma revolução tecnológica muito grande para você ingressar em uma fase mais avançada, se fosse um período de tendência recessiva muito forte. Na verdade, a estrutura que esta sendo mantida no EUA é de uma fase recessiva, não faz sentido você manter um sistema que reconhecidamente não pode existir sem o seu apoio. Se você reconhece que o sistema financeiro só existe subsidiado por você e que não vai gerar mais-valia para te pagar o subsídio, mas que vai te exigir permanentemente mais e mais, então você não tem como pagar estes custos novos que você está gerando. Bom, mas eles dizem que é para manter o maior número de pessoas trabalhando, evitar o desemprego, mas por que não essas pessoas trabalharem em setores que a sociedade realmente necessita? Eu não tenho ideia do porquê manter um sistema que não tem sentido.
(C&LC) - Fale um pouco da experiência da Venezuela, Bolívia, já que você falou que é necessário superar esse modo de produção capitalista com novas experiências e o socialismo.
(Theotônio) - Exatamente aqui na América Latina, em particular, cria-se esta possibilidade de você estruturar uma situação com excedente financeiro, por exemplo, o que é uma coisa muito nova na região. Não que nós não tivéssemos excedente financeiro antes, mas é que já o tínhamos totalmente comprometido, agora nós o temos sobrando. Foi um período muito rápido e, em função da China, da Índia, de repente você entra neste mercado novo, consegue expandir novamente a exportação e aí você gera um excedente que não tem antecedentes para o seu uso, a não ser aqueles gerados pelo sistema central que te puxou. E eles já estão, como eu disse, inventando fórmula: “não, nós precisamos de quinhentos bilhões de dólares para recuperar a economia mundial, então tira esse dinheiro daí e bota aqui no Fundo Monetário Internacional.” Eles já estão descobrindo o que fazer com os nossos excedentes; mas, por outro lado, você vê o Hugo Chavez nesse sentido, que está sendo muito hábil e que diz: “Não, se nós temos excedente vamos criar um banco nosso, não vamos colocar em banco americano, em dólar. Então vamos usar outra moeda, o euro, ou uma moeda nossa mesmo para fortalecer as relações internas, nosso processo de integração” O Banco do Sul é uma proposta muito grande neste sentido e a ideia que o Chavez tinha era de que ele movesse uns vinte bilhões de dólares e que ajudasse a criar uma infra-estrutura fantástica para a América do Sul, porque com vinte bilhões de dólares você tem uma infra-estrutura e tanto. Mas o que ele queria também é que grande parte destes recursos fosse utilizada para a parte social, educação, saúde, toda uma política de habitação. Mas o Brasil restringiu isso, então eu acho que o Banco do Sul vai mobilizar talvez algo entre oito e dez bilhões de dólares, por aí, o que já é alguma coisa importante.
A América Latina sozinha não tem muita capacidade de utilizar esse excedente rapidamente, porque exige uma capacidade de projeto, capacidade tecnológica. Como o governo venezuelano está vendo isso? Está vendo isso do ponto de vista do fortalecimento das comunidades, de um lado, e do fortalecimento do Estado, de outro, para um grande projeto de planejamento, grande estrutura de planejamento do desenvolvimento venezuelano. No que diz respeito ao setor comunitário, isso avançou muito, hoje a Venezuela tem mais de seis mil comunidades organizadas com um grau de conscientização realmente impressionante. Eu tive a oportunidade não só de estar nas comunidades, como também em uma reunião do Banco Popular, com o Chavez, em que os dirigentes das comunidades iam receber a ajuda do banco comunitário a partir dos seus próprios projetos. Então Chavez chamava cada um deles e perguntava: “Como é que está o seu projeto?”. E você vê jovens, meninos de uns 20 e poucos anos, dizendo: “Nós temos que fazer a construção de uma parte para atender crianças mais novas, porque os pais têm que trabalhar, isso aqui para nós é fundamental.” Então ele perguntava: “Mas vocês não estavam com o problema da água?”, “Não, nós já resolvemos em parte, porque já tínhamos tudo pronto para a ligação da água, porque a água nós buscamos em tal parte que é muito longe. E eu vou confessar para o senhor, presidente, eu não tinha ideia de onde vinha a água! Para mim a água vinha normalmente, agora é que sei que é muito complicado, porque para buscar água precisamos disso e daquilo, de muita gente, gastamos não sei quanto de energia e de inúmeras outras coisas...” . E cada um que falava do seu projeto falava conhecendo tudo da sua comunidade, criando-se um espírito comunitário realmente impressionante, acompanhado dos recursos necessários. Antes também não se interessavam por estas coisas porque não tinham recursos. De que adianta ficar pensando que precisa disso, precisa daquilo, se não têm forma de conseguir. Agora dizem: “agora nós temos, precisamos resolver os nossos problemas, porque agora podemos resolver”.
Então é um desenvolvimento dessa consciência de baixo para cima muito forte, claro que estimulada desde cima. É como o pessoal tem que compreender isto, como eles falam “para que eu ia saber tudo isso antes, se não ia me adiantar nada?”. Você tem que criar as condições políticas globais para que você localmente se interesse em avançar. Então eles estão avançando muito nisso. Conheci um arquiteto e ele me falou: “hoje eu tenho uma empresa de arquitetura, que faz planejamento comunitário. As comunidades me pagam para eu planejar. Eu tenho vários projetos, muito mais serviços do que eu posso fazer.”. Todas as comunidades estão muito bem formadas e com projetos para avançar que precisam de gente para organizar. E eles têm uma consciência crescente de uma verdadeira revolução. Então você tem esse lado comunitário que esta tendo um avanço muito importante. O Hugo Chavez quer transformar estes avanços comunitários em parte do poder constitucional, essa foi uma das coisas em que ele perdeu, que dizem que o plebiscito era só para aumentar o direito de se reeleger. Mas o plebiscito tinha uma quantidade enorme de mudanças e uma das principais era o que ele chamava de transferência de poder do parlamento tradicional para as comunidades. O parlamento mesmo aceitava transferir poder para as comunidades, alguns deputados não gostavam muito disso, mas essa foi uma das razões que facilitou que alguns saíssem fora pensando: “com essa ele não vai conseguir” e assim perdeu por um ponto, é verdade. Mas esta é a ideia de Hugo Chavez. Ao mesmo tempo, ele tem essa preocupação de que o Estado também possa ter grandes unidades de planejamento a nível nacional, que é o caso, por exemplo, da zona de petróleo novo, que a Venezuela tem. A ideia é de que ali se criem comunidades, não no sentido de pequenas comunidades, mas de um grande planejamento urbano, que permita um desenvolvimento já com planejamento socialista nessas comunidades.
Bom, então vocês veem que há uma perspectiva na Venezuela de criação de uma forma superior de relações sociais, de gestão, de organização. Avançou-se enormemente no plano social. Veio primeiro a educação. O cálculo do Chavez é de que 70% dos venezuelanos estejam estudando neste momento, em diferentes níveis, porque você fez a grande campanha pela alfabetização, mas imediatamente entrou o curso primário. Os que fizeram o curso primário já estão no secundário, porque teve uma missão especial para o secundário, e depois tem uma outra missão especial para a universidade. A ideia é de que você criar uma universidade em todas as cidades. Os cubanos estão criando uma universidade em todas as cidades e agora eles estão querendo fazer isso na Venezuela, de tal forma que o projeto educacional está em marcha. Com o projeto cultural, livros, com uma parte de comunicação, centralizada não 100%, mas que mantém a população informada, as discussões de ponta, os problemas nacionais, etc. e um grande desenvolvimento, por exemplo, da televisão comunitária. Quase todas as comunidades hoje têm sua televisão e com uma formação muito grande também de técnicos para essas televisões. Então você tem também um processo de estudo da realidade de cada local, um grande movimento da comunicação por internet, muito forte... Que foi muito importante para derrubar o golpe de Estado. Eles [os golpistas] tomaram os meios de comunicação, mas não puderam tomar a internet, então o pessoal se informou por essa via. Na parte de saúde, hoje quase todas as comunidades já tem uma atenção oficial forte e que grupos de comunidade já formam quase 2000 centros de saúde, já num nível de clínica extremamente importante. Eu visitei algumas dessas clínicas de altíssima tecnologia, com uma atuação de cubanos muito forte na direção delas, mas já formando os venezuelanos para assumir. Há uma força massiva de médicos e paramédicos no país. Estão realmente fortes por essa área social, a população se sente realmente... Você vê a reação deles: “nossa, essa clínica, eu nem sabia que existia uma coisa assim, eu estou maravilhado.”. E então alguém do povo diz “Então está aqui, qualquer problema que eu tenha, venho aqui, o pessoal é da região, qualquer problema eu levo.”, porque os caras estão todos interessados em usar os recursos que estão sendo postos à disposição deles.
Na área de habitação eles estão construindo muitas casas, talvez eles pudessem avançar mais se eles estivessem usando outros tipos de tecnologia, mas estão fazendo em grande quantidade, muito bem. Desenvolveram também setores industriais importantes. Conseguiram um grande avanço no que tinha acabado na Venezuela. A indústria leiteira, por exemplo, esta se aproximando de poder exportar, quando eles importavam toda a produção de leite do país e desenvolveram vários setores agrícolas importantes, com uma reforma agrária relativamente limitada, porque tem muita abundância de terra não utilizada, uma abundância muito grande...e, claro, alguns setores de empresas capitalistas que mantinham terras improdutivas foram estatizadas. E um desenvolvimento sem agroindústria. Então a Venezuela está tentando superar a condição de viver exclusivamente do petróleo, que é o grande problema nacional. No entanto, o petróleo é ainda o grosso da renda do país, mas [a indústria do petróleo] foi tomada de um grupo que ocupava, dominava o petróleo. A PDVESA (Petróleos da Venezuela S.A) se reestruturou, botou mais de sete mil de engenheiros e profissionais para fora. Quando eu vi aquilo eu falei - nossa, não vai ter jeito de funcionar! – mas ta funcionando muito bem, pelo menos que eu saiba. De vez em quando têm umas crises, mas você vê que não tem muito fundamento. E isso foi também resultado de uma luta, porque esses funcionários fizeram uma greve na PDVESA e os trabalhadores prendiam os sujeitos, a mulher da cozinha prendia os caras e dizia “não, não, não, vocês vão é trabalhar, senão não tem comida, não tem nada!”, fechavam eles para eles terem que trabalhar. Criaram um ambiente de intervenção no setor, sobretudo o dos mais baixos escalões, a greve acabou esvaziando. Era realmente uma greve política e as pessoas foram postas para fora. Agora funciona a PDVESA e avança para o que deve ser uma empresa socialista, existe esse conceito agora de empresa socialista, que está sendo aplicado a algumas empresas, não é de nenhuma forma generalizado, mas sobretudo às empresas públicas. A ideia é que os trabalhadores assumam a direção das empresas. Há todo um processo de transferência da gestão para os próprios trabalhadores. É um processo complicado, não se está fazendo de uma maneira imediata e total, é um processo. É um pouco inspirado na fórmula de auto-gestão iugoslava, que tem sido estudada bastante, e alguma experiência dos chineses na época da chamada revolução cultural, mas sempre adaptando à situação da Venezuela.
Têm outras possibilidades, é um país que tem riquezas enormes que não estão exploradas, um potencial muito grande. Fim de semana a classe média ia para Miami fazer compras e tudo bem, mas agora o negócio é diferente, têm várias restrições cambiais, tem que comprar lá mesmo, mas ainda é quase tudo importado, mas pelo menos nos setores básicos criaram uma indústria própria que atende às necessidades da população. Tudo isso forma realmente um projeto novo, com muito realismo. Não em torno das grandes ideias que são referência, mas tentando colocar isso dentro de um plano bastante realista e concreto.
A situação da população também é bastante interessante, porque você tem essa emergência indígena com uma concepção de Estado, uma concepção de relação com a natureza, com toda uma visão de mundo própria. Eles insistem em assumir a direção da sociedade, tudo do ponto de vista da visão do mundo deles. No Equador, você tem uma classe média nativa, profissionais de muito bom nível no governo, os indígenas têm muita importância, exercem muita pressão, mas não se sentem tão donos do Estado como na Bolívia. Mas existe uma população original, nativa, frente ao Estado. Suas propostas são também muito interessantes, não tenha nenhuma dúvida. Na Nicarágua, tem o grande problema do atraso que voltou depois dos anos da guerra contra os sandinistas, com muitos compromissos, mas eles estão ficando cada vez mais dependentes da Venezuela e estão se aproximando. A ideia da ALBA é muito forte, sua última reunião foi realmente uma coisa muito impressionante. A gente tinha no grupo de julgamento do prêmio [Libertador al Pensamiento Crítico] um belga e ele, assistindo, disse que a primeira coisa que ele achava estranha é que você assiste a reunião de integração dos presidentes toda, o tempo todo, em três televisões. É complicado, porque acho que muita gente não gosta disso, mas o fato é que você vê tudo. E é muito bom, é muito interessante, porque é um ambiente de discussão entre eles, muita erudição sobre os grandes libertadores, sobre a história de seus países, sobre a sua literatura. Uma reunião assim não parece reunião de presidentes, é reunião de um grupo de gente muito especial. Então, muitas decisões fundamentais são tomadas. Eu estive numa reunião anterior que foi a da Petrocaribe, os venezuelanos articularam uma relação com o Caribe que liquidou a influência americana por lá, uma coisa impressionante, eles tomaram todos os países do Caribe para o lado da Venezuela e entrou a América Central. Ai estava o Zelaya, o guatemalteco, que é um sujeito estranho, mas esse Zelaya, que sem-vergonha, eu já tive lá em Honduras, não tem porcaria nenhuma de esquerda [risos] e ele falou como se fosse de esquerda e tal, é um oportunista esse cara, depois continua tomando essas posições...Ele tem uma ministra de Relações Exteriores que é fortíssima e ela fala, dentro de Honduras, dando entrevista para a CNN, para a Telesur, que o “Fidel e tal...”, “o Fidel é meu líder.”. Inclusive naquela discussão dele com o Chavez na Telesur, fazia uma discussão aberta sobre socialismo, comunismo, já depois do golpe, chegando até a um certo acordo. Eu fico olhando e me pergunto – como é que pode? – mas pode! Pode, porque hoje chegou-se a um clima que permite isso, o Chavez dizendo assim: “Você, ministro do exército de Honduras, fique sabendo de uma coisa, você é um gorila e um exército de soldados não pode admitir um gorila nas Forças Armadas, Forças Armadas é de soldados, de gente que está do lado do povo, você é um gorila!”, mas aí já veio o Zelaya contemporizando, dizendo que o Chavez já era de dentro do exército e que pode fazer essas coisas, falar essas coisas, mas ele mesmo [Zelaya] não, já que não é militar e que não tem como fazer esse confronto direto, isso na televisão aberta, discutindo estratégia e tática abertamente. Isso para o povo é maravilhoso, porque o povo começa a discutir também, todo mundo que assiste TV vê e pensa: “é verdade”, logo já conclui que tem que enfrentar os caras mesmo. O debate virou uma coisa de conscientização.
(C&LC) – E agora vem o golpe e o povo nas ruas...
(Theotônio) – Exato, ali nas ruas, mantendo. É um pouco desorganizado, você vê eles nas ruas correndo, não estão organizados, têm pouca estrutura de organização. Aquela região esteve na mão dos Estados Unidos, na luta contra os “Contras” na Nicarágua, por exemplo, como diz o cara da Globo: “luta contra os “guerrilheiros”. Eles chamavam de “guerrilheiros” o governo da Nicarágua [à época, os sandinistas], ora, guerrilheiros eram eles! Eu estive lá [na Nicarágua], há uns seis ou oito anos. Já acabando, os sandinistas já tinham conseguido o que eles queriam, que era mudar o governo da Nicarágua [neste período, ainda dominado pela direita], mas não puderam totalmente. Os sandinistas perderam a eleição, mas acabaram se tornando uma força política importante, exercendo o controle das Forças Armadas por dentro governo. Por isso tudo, quando você vê eles na rua, os hondurenhos, você não sente realmente que tem um grupo dirigindo aquilo, atuando organizadamente, mas eles estão lá. O que é mais interessante, do ponto de vista da recente conscientização, porque é muito recente o processo de Honduras, esses caras estão se radicalizando e topando paradas assim: “tô metido no meio desse pessoal, mas não sei bem como agir, mas tô aí!”, sabe? Mulher com os filhos, puxando as crianças, numa situação de tomar uma base da aeronáutica, é uma coisa no mínimo de inexperiência. Quando esse pessoal estiver mais organizado, então, a direita, que é uma direita atrasada mesmo e que viveu praticamente dos recursos norte-americanos, agora vai ter que ver o que fazer sem esses recursos.
(C&LC) – Você acha que é possível reverter esse golpe?
(Theotônio) - Acho. Aliás, esse é um problema complicado, mas o Chavez já disse que, se os golpistas tocarem em algum venezuelano lá dentro, que eles [os venezuelanos] estariam prontos para invadir Honduras e depô-los, ou seja, os golpistas não podem pensar que vão fazer o que quiserem lá. Então eles têm medo, ainda mais se houver uma revolta, um levante. Eles têm que se preocupar, é muito pequena a oligarquia, muito pequena. Agora, são caras muito atrasados, em geral. Esse curso que eu fui dar lá era do Centro Americano, não era só de Honduras, tinha um grupo hondurenho, interessante e tal, mas com muitas dificuldades.
(C&LC) – Theotônio, eu acho que nós estamos nos encaminhando aqui para o fecho da entrevista. Você tocou em questões muito importantes e fundamentais, com grande erudição. O Raphael até já comentou e você em diversos momentos já deixou claro que não é possível superar essa crise dentro dos marcos do capitalismo, você apontou as experiências...
(Theotônio) – O próprio capitalismo, cada vez que ele se supera, tem que ser na direção de uma economia mais social, então ele não tem condições de deter uma conscientização crescente da humanidade. Essa experiência do neoliberalismo foi muito brutal, tentaram impor uma concepção que parecia realmente dominar o mundo e, de repente, quando você tem uma democratização efetiva, todo mundo vota contra. Quando eles imaginavam que todas as pessoas estavam convencidas, pelo contrário, todo mundo quer outra solução. Se você pensar, por exemplo, na primeira eleição de 2002, no Brasil, os candidatos de oposição tiveram 76%, o Serra teve 24%, num país completamente na mão deles, com um presidente que era uma grande figura. Eles não têm condição, quer dizer, a ideologia capitalista não tem condições de ganhar realmente a discussão, porque o resultado desse regime econômico é profundamente trágico, não só explorador e expropriador como excludente. A dinâmica desse capitalismo é cada vez mais excludente. A massa acabou perdendo muito dessa capacidade de conhecimento e organização partidária, que foi muito importante numa fase, mas ela foi contra [o neoliberalismo]. Na Europa é que existe ainda um pouco de dúvida. Nos Estados Unidos tem emergido uma posição, vamos dizer, anticapitalista. Não tem muito a visão de uma proposta socialista, mas sim uma proposta anticapitalismo concreto, não necessariamente o sistema, mas contra uma empresa, contra um dirigente de empresa ou em qualquer outra forma concreta em que se manifesta, para eles, esse aspecto da sociedade e é crescente.
(C&LC) – É uma coisa meio orgânica...
(Theotônio) – É, porque a educação americana é muito “particionada”, você pensa analiticamente, uma coisa separada das outras, então, uma determinada coisa ele conhece muito bem, as outras não. Ele é educado a não ter interesse por outras coisas, mas para concentrar em uma só, tendo certa dificuldade em articular o conjunto. Mas eles têm a visão de situações concretas e sabem delas: quanto ganha cada diretor de empresa, essas coisas concretas, a empresa dele, ele sabe e tem o seu sindicato. Esse tipo de problemas eles têm e, nessas questões, a posição deles é cada vez mais clara: contra a guerra, fizeram muita oposição contra a guerra, porque evidentemente o custo da guerra foi muito alto, o custo humano, sem falar no custo que é mais complexo para eles aprenderem, que é o custo econômico.
Então, o capitalismo não tem condições de manter um controle ideológico claro, dentro de uma perspectiva capitalista pura. Eu acho, inclusive, que uma nova etapa de expansão capitalista ideológica vai ser do tipo social-democrata, com uma linguagem de capitalismo de Estado. Vai diminuir muito a ênfase na capacidade da economia privada de se sustentar e ir em direção a um campo mais público, de economia pública. O que, para o setor privado, passa a ser também uma salvação. Eles estão desmoralizados e é através do Estado que podem sobreviver. Então, vão ter que encontrar uma forma de fazer com que as pessoas aceitem que o Estado os financiem e os sustentem, vão ter que adotar uma postura ideológica nova: Soros vai ser um dos líderes dessa postura e outros mais, o [Joseph. E.] Stiglitz vai ser muito importante e vários outros, como [Oliver] Sachs, que era muito pró-neoliberal, e que atualmente anda “muito preocupado” com a pobreza, a distribuição de renda, a questão ecológica. Eu acho que é esse grupo que vai assumir a liderança ideológica. Nós vamos ter uma nova luta ideológica complicada, inclusive a noção de desenvolvimento estratégico, voltando-se mais para uma perspectiva de crescimento tradicional e de menos ênfase numa redistribuição da renda.
Eles tiveram muito êxito, no caso do Brasil, com essa política de renda, de dar bolsa. Então viram que têm condição de acomodar bem durante certo período, pelo menos. Provavelmente deve expandir mais isso. Há muito tempo que o FMI está nessa política de renda, essa é a única saída. A produção do capitalismo, hoje, que é de alta tecnologia, é muito cara para gerar emprego. Um emprego hoje custa cinquenta, sessenta mil dólares, pelo menos, ou mais. Então, não tem condição de gerar emprego suficiente para a população sobressalente. Nós custamos (assistencialmente) para eles cinquenta dólares por mês, seiscentos dólares por ano, em dez anos são seis mil dólares, enquanto que para gerar um emprego precisa-se de cinquenta, sessenta mil dólares. Então a única forma de manter essa pessoa é dando cinquenta, sessenta por mês. Eles vêm defendendo isso há muito tempo, ter uma política orientada para setores do lupenismo. Abandonaram a ideia de um Estado que resolva as coisas universalmente, mas, no caso do Brasil, eles estão alcançando um nível muito alto, nós já temos doze milhões de famílias dependentes. Essa ideia do Lula ir para o Banco Mundial tem a ver com isso, com o êxito dessa fórmula, com uma ideia de transformar o Banco Mundial em um “banco popular”, com o Lula.
(C&LC) – Já finalizando, pedimos uma mensagem final para saber, no sentido da última pergunta, se há uma possibilidade de ruptura profunda com o capitalismo nos moldes atuais da Venezuela, ou se seria necessária uma revolução social nos moldes que a conhecemos, ou, ainda, se estes são caminhos que dependem das condições de cada país?
(Theotônio) – Acredito que isso depende muito da correlação de forças de cada país e também da direção geral do sistema. Pode obrigar, em uma certa situação, a avançar numa luta mais violenta. Inclusive, a desestruturação deles e falta de perspectiva imediata ajudam você a avançar dentro do sistema atual para poder mudar a correlação de forças e avançar mais, posteriormente. Essas coisas você não pode ter uma posição dogmática, tem que ser visto na prática, entende? Temos que formar uma geração de dirigentes políticos que tenham percepção para isso e, para isso, nós precisamos ter um pensamento econômico, social e político dialético, análise concreta de situações concretas, a velha postura leninista é muito importante. Não o Lênin que o Stalin fez o resumo das teses, com ideias ajustadinhas, esse é apenas um primeiro olhar, mas estando em cima do processo, em cima da prática, e analisando a teoria para responder à prática. Precisamos desse tipo de dirigente intelectual para trabalhar junto a essa perspectiva. Nós temos feito algum esforço nesta direção. A teoria da dependência econômica foi uma contribuição, e é uma contribuição importante nesse sentido, a visão do sistema mundial também, mas isso tudo articulado com o processo político. Essa articulação dos Partidos Comunistas internacionais eles sempre tentavam fazer, mas fizeram de uma maneira muito dogmática. Uma das coisas que me constrange, às vezes, é pensar em um país como a Itália, por exemplo, com um marxismo fantástico, que sempre teve um movimento operário muito forte, hoje são tudo direitista, que coisa impressionante! Na União Soviética, você ser capaz de decretar o fim de um Partido Comunista já com mais de cem anos de história, você chegar e dizer: “acabou esse partido...” e ninguém se levantar para dizer “não, esse partido é meu!”, eu acho isso realmente uma coisa impressionante. Eu perguntei para alguns amigos que eu tinha lá o que aconteceu concretamente e eles me responderam que tinham uma sede, que frequentavam sempre, mas que, um dia, chegou um homem com uma ordem da prefeitura dizendo que agora a sede do Partido ia ser tomada, então eu disse – mas vocês entregaram? – e ele me disse “é, ele tinha uma ordem da prefeitura...”, mas o que é isso? Eles simplesmente entregaram! E todo esse grupo que assumiu, controlando as empresas e tudo, ultra-milionários, um assalto ao Estado.
Nós temos que desenvolver um outro estilo, que nos assegure mais identidade não com um partido abstrato, mas um elo concreto com o seu partido, o seu sentimento revolucionário, da sua vida. Eu acho que na América Latina estão se criando condições para isso, não para um partido tradicional, mas para um grande movimento de base, uma subjetividade que está nascendo das bases muito forte, muito poderosa e de setores que foram, como o caso indígena, por exemplo, explorados e reprimidos brutalmente, se levantando com uma consciência crescente, cada vez mais clara, e com uma identidade cada vez mais forte. De repente estão propondo um tipo de organização para o Estado deles, eles querem dessa forma e, mesmo que digam que o Estado não é assim, a eles não interessa, porque o Estado deles é o que querem, um Estado plurinacional, que os respeite enquanto comunidade. Isso está vindo de baixo com muita força e eu creio que, por aí, nós temos um potencial muito grande. O caso da ALBA é muito impressionante, hoje são nove países, numa ideia que surgiu há uns dois, três anos. Eles têm um estilo de relação próprio. Foi eficaz em Honduras, todo mundo junto ali na Nicarágua e estão dispostos a ir junto com o Zelaya, vão tomar Honduras com ele, os presidentes, com essa disposição. Um estilo novo de grande solidariedade entre os povos, uma coisa nova, inspirada no bolivarianismo, o período da grande luta de libertação da América Latina, as nações ainda não eram tão fortes, então era todo mundo amigo, todo mundo na mesma luta. Uma postura da Venezuela muito generosa, enquanto a direita de lá diz que está “entregando” tudo para outros países... Quer dizer, para os Estados Unidos, que dominava, podia entregar. Agora, para ajudar outros povos não, é um absurdo! Em termos econômicos é uma ajuda relativamente marginal, mas é muito importante para países menores como os centro-americanos e os do Caribe. Imagina em um país que não tem petróleo de repente o preço subir e eles não terem condições, mas os venezuelanos entregam a eles o petróleo a preços não espoliativos e com prazos de pagamento dilatados, enquanto os Estados Unidos, com todo seu poder, não dão um tostão e, quando dão, dão cinquenta milhões, cem milhões e, neste momento de pouca liquidez, então, os Estados Unidos dão menos ainda. Nesse momento, você sente essa possibilidade de gerar solidariedades regionais fortes e avançar numa perspectiva nacional igualmente forte.
Este prêmio, o maior prêmio do mundo em ciências sociais, cento e cinquenta mil dólares, tinha uma discussão lá dentro levantada pelos próprios europeus sobre a pertinência de se dá-lo para o Mészaros, um europeu. O engraçado é que levantaram essa questão, mas eles se inscreveram e competiram pelo prêmio. Tivemos cerca de cento e cinco livros inscritos e, pelo menos, vinte voltados para a análise da situação latino-americana, inclusive de europeus, para a problemática atual do socialismo, de muita qualidade. Você vê realmente um movimento de ideias e estudo muito forte na busca de um caminho dentro de uma perspectiva socialista, o que mostra que esse processo está movendo as pessoas.
No Brasil, nós estamos muito fora de tudo isso, o que você discute hoje na Venezuela, se você quiser discutir no Brasil, não dá. As pessoas, não só não vivem uma situação desse tipo, como acham ridículo que alguém possa viver uma situação dessas. Para eles, é tudo uma invenção para ver se o Chavez vai ter mais poder, ou o Lula, essa coisa meio idiota, enquanto, para os venezuelanos, é um aspecto fundamental do processo. Não estamos tomando em consideração as mudanças profundas, a consciência crescente. Realmente o debate está em um outro nível. Nós ainda estamos discutindo se a teoria da dependência teve importância ou não. Tem, mas nesse país... O Chavez colocou que a teoria da dependência é um acréscimo ao processo venezuelano, ao marxismo... Recentemente, ele nomeou um ministro trotskista, um companheiro trotskista dele. O ministro avisou a Chavez da sua posição, que era trotskista, e Chavez deu de ombros dizendo que não se importava. Agora, imagina você aqui discutir se um ministro é trotskista ou não? Lá já existe todo um ambiente... Apesar de que o PCdoB já tem penetração no governo, abrindo muito esse lado, pelo menos de que comunista no governo já pode ter. Mas também não são tão comunistas assim... [risos].
(C&LC) – Talvez não na exata acepção do termo...
(Theotônio) – É, são companheiros de tradição comunista que estão buscando se adequar a esse tipo de luta e tal, dentro das possibilidades, combinando sua formação histórica com o tipo de luta que não estava bem claro. Se bem que os partidos comunistas já tiveram participação em governos. Nós aqui tivemos no governo Vargas, nos últimos dois anos, sem ter direito a nenhum ministério, apenas postos secundários. Obviamente porque os brasileiros entraram na guerra do lado dos soviéticos, havia uma razão. Houve avanços sociais muito profundos neste momento e nacional-democráticos, então tudo bem. Quando se participou, depois, foi no governo Kubitschek, por exemplo, que não era um governo propriamente de esquerda, mas que também fez transformações econômicas muito importantes, um impacto social e político muito grande. São experiências que tivemos de participação no governo e que são sempre muito complicadas ideologicamente. É complicado aceitar certas coisas. Por exemplo, ter que ser um aliado profundo do companheiro Sarney. É forte, né? Já tiraram os governos de oposição dos caras em dois Estados, daqui há pouco vão ser todos. Perdeu a eleição, fácil, mostra onde houve corrupção, coisa que sempre há alguma, aí tira o cara e bota o outro que eles quiserem, um eventual segundo colocado. Como é que pode um negócio desses? A reação da massa é muito pequena e ninguém se manifesta... Há uma aceitação, porque se alega que ela [Roseana Sarney] tem direito a assumir no lugar do governador derrubado, porque provou que o sujeito efetivamente estava envolvido no escândalo de corrupção. Então o cara sai e o outro tem que entrar, particularmente quando é da família do Sarney, que coisa incrível! Nunca perde, quando perdeu, pega de volta no tapetão.
(C&LC) – A gente queria agradecer muito esta oportunidade, você tem uma trajetória muito permeada de conhecimento e, para o nosso centro de pesquisas isso é muito importante. O CEPPES, você lembrou, foi fundado pelo José Nilo com o Aluísio lá na Baixada Fluminense, em 1988, e a sua entrevista vai ser muito importante nesse número que sai agora, o número 4. Vai enriquecer muito, porque ela foi dada por alguém que faz parte dessa geração do José Nilo, desse pessoal que foi para a Baixada retomar a organização popular por ocasião da anistia, em 1979. Então, eu, em nome dos companheiros aqui do CEPPES que estão presentes, quero agradecer mais uma vez a oportunidade e torcer para que tenhamos outras ocasiões como essa. Tanto o pessoal do Inverta como da revista estamos de páginas abertas para que você esteja sempre lá. Ficamos muito gratos.
(Theotônio) – Espero que vocês consolidem bem este trabalho porque nós precisamos desse tipo de articulação.